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terça-feira, agosto 15, 2006

Fundamentos da Fé Cristã - Índice Geral

Artigos em Série

Sola Gratia - A Controvérsia Sobre o Livre-Arbítrio


AGOSTINHO X PELÁGIO - A CONTROVÉRSIA

01 - Introdução
02 - Somos Capazes de Obedecer: Pelágio
03 - Somos Iapazes de Obedecer: Agostinho

A Morte da Razão



01 - Introdução e Natureza da Graça
02 - Uma Unidade de Natureza e Graça (Em Breve)
03 - A Ciência Moderna nos Primórdios (Em Breve)
04 - O Salto
05 - A Arte como Salto
06 - Loucura
07 - Racionalidade e Fé

Artigos Avulsos

sábado, agosto 12, 2006

Sola Gratia: Introdução

O Evangelicalismo e uma Heresia Antiga

Talvez o acontecimento mais vergonhoso na história da nação judaica antes da destruição de Jerusalém, em 70 d.C., tenha sido o cativeiro da Babilônia. Em 586 a.C., o Reino do sul foi conquistado por Nabucodonosor e a elite judaica foi levada para a Babilônia. Lá, o povo de Deus se viu diante da onerosa obrigação de entoar a canção do Senhor numa terra desconhecida e estrangeira. Eles foram forçados a pendurar suas harpas nas árvores às margens do rio Eufrates.

O cativeiro Babilônico foi um tempo de teste, a prova severa que produziu gigantes espirituais como Daniel e Ezequiel, e campeões heróicos da fé como Sadraque, Mesaque e Abede-Nego. As chamas da provação foram aumentadas pela pressão sistemática imposta ao povo judeu para que adotasse os caminhos da nação pagã que o mantinha prisioneiro. Indubitavelmente, muitos dos cativos capitularam e lutaram para assimilar o seu novo meio. Houve um preço a ser pago pela não-conformidade, um custo severo pela resistência ao governo e aos mandatos culturais de aquiescer aos costumes do paganismo. Foi o palco histórico conducente à prática do que Friedrich Nietzsche mais tarde chamaria de “moralidade da multidão”.

Ajustar-se aos costumes e visão de mundo alheio é uma das mais fortes pressões que se pode experimentar. Estar culturalmente “fora dela” é freqüentemente considerado o ponto mais deprimente de realização social. As pessoas tendem a buscar aceitação e popularidade no fórum da opinião pública. O aplauso dos homens é o toque da sirene, o canto do paganismo. Poucos são os que exibem a coragem moral requerida pela fidelidade a Deus quando marchar de acordo com a sua batida de tambor não é popular ou pode ser até mesmo perigoso.

Lembramo-nos de José, que foi traiçoeiramente vendido para o cativeiro estrangeiro e gastou sua juventude numa cela de prisão, contudo permaneceu fiel ao Deus de seus pais, ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó. No Egito, José foi uma congregação de um membro só. Sem o apoio da igreja ou do costume nacional, ele resolveu ser fiel a um Deus no qual ninguém ao seu redor acreditava, exceto aqueles convertidos pelo seu testemunho.


Nosso Cativeiro Babilônico

Não vivemos na Babilônia. Gozamos de uma grande extensão de liberdade religiosa e de uma herança cultural que, num grau maior ou menor, foi construída sobre a base da fé cristã. Contudo, essa cultura tem-se tornado cada vez mais hostil ao Cristianismo bíblico e a nossa fé tem sido considerada progressivamente irrelevante para a sociedade moderna. A nossa era tem sido descrita como “pós-cristã”, na qual as igrejas se assemelham aos museus e a fé bíblica considerada um anacronismo.

A “Babilônia” cultural de nossos dias é freqüentemente descrita pelos cristãos evangélicos como a visão de mundo adotada pelo chamado humanismo secular. Esse preceito tem sido usado como uma palavra ou certeza, o humanismo secular tem uma face real mas essa visão de mundo é apenas um dos muitos sistemas que competem com o Cristianismo na mente e na alma das pessoas.

O secular do humanismo secular refere-se especificamente à visão de mundo na qual as pessoas entendem o propósito e significado da vida humana. O termo secular é derivado do latim saeculum, uma das palavras latinas para “mundo”. No latim antigo, os dois termos mais freqüentemente usados para descrever este mundo são saeculum e mundus. A palavra mundano (mundane em inglês) é derivada do último. No mundo antigo, mundus normalmente se referia à dimensão espacial do mundo, apontando especificamente ao “aqui” geográfico do nosso lugar de habitação. O termo saeculum geralmente se referia ao modo temporal de nossa existência, o “agora” da nossa vida presente. Juntos, os termos se relacionam ao “aqui e agora” deste mundo.

Na superfície, não é errado ou não-religioso falar do aqui e agora da existência humana. Nossa vida é realmente vivida dentro dos limites geográficos deste planeta e todos nós medimos nossos dias por unidades de tempo que são, no mínimo, subeternas. O problema não está na palavra secular. O problema surge quando o sufixo ismo é adicionado à palavra -= originalmente dócil -, secular. O sufixo não indica tanto uma estrutura de tempo quanto uma visão de mundo filosófica, um sistema pelo qual a vida é entendida e explicada.

Quando o termo secular é mudado para secularismo, o resultado é uma visão de mundo que declara que o agora é tudo o que existe para a experiência humana. Ela assume que a experiência humana é eliminada do eterno e transcendente. Ela nos diz para nos apoderarmos de todo o prazer que pudermos porque “só circularemos uma vez”. Se Deus existe, então, nessa visão, não temos acesso a ele. Fomos abandonados em solo estranho onde apelo aos absolutos morais e filosóficos são julgados fora dos limites. O nosso tempo é um tempo de crise existencial no qual o propósito e o significado são encontrados no domínio da preferência pessoal. Temos verdades, mas não verdade; propósitos, mas não propósito; costumes, mas não normas.

Na frase humanismo secular, a palavra secular serve como um adjetivo de qualificação. Ela define uma linha particular do humanismo. O humanismo, em várias formas, tem estado presente por séculos. Alguns indicam o filósofo pré-socrático Protágoras como o fundador original dessa filosofia. Seu mote homo mensura define a essência do humanismo. Significa que o homem é a medida de todas as coisas, que a humanidade representa o ápice dos seres viventes. Não há nada mais alto, nenhum ser supremo que reine e governe sobre os interesses dos seres humanos. Nesse caso, não há uma distinção definitiva entre um ser supremo e um ser humano porque o ser humano é o ser supremo.

Embora Protágoras seja normalmente creditado como o fundador do humanismo antigo, podemos encontrar as suas raízes muito antes dele. Essa visão de mundo foi primeiramente apresentada como uma opção filosófica no Jardim do Éden. A ironia é que ela foi apresentada não por um homem, mas por uma serpente. Seu mote não era homo mensura, mas sicut erat dei. Essa frase em latim traduz a promessa sedutora de Satanás para os nossos primeiros pais: “e sereis como Deus” (Gn 3.5).

O conflito entre o Cristianismo e o humanismo secular é um conflito sobre os definitivos. Esse conflito não dá espaço para concessões. Se Deus é definitivo, então o homem definitivamente não é. Inversamente, se o homem é definitivo, então Deus não o pode ser. Só pode haver um definitivo. O acordo pode ser alcançado no domínio da cultura pela tolerância entre as visões de mundo concorrentes. Uma nação secular pode escolher “tolerar” o Cristianismo em algum grau enquanto este for visto meramente como a expressão de uma forma de religião humana, mas não pode tolerar as alegações de verdade do mesmo. O Cristianismo está sempre na posição de antítese com relação ao humanismo secular.

Essa antítese faz com que seja difícil para o cristão moderno manter a integridade da fé numa cultura estranha. Ele deve encarar a escolha difícil entre tocar a sua harpa ou pendurá-la na árvore mais próxima. O cristão deve desejar ser um peregrino, um hóspede temporário numa terra estrangeira se espera ser fiel a Cristo.

Talvez a maior ameaça a Israel não tenha sido a força militar das nações hostis e estrangeiras, mas a dupla ameaça do falso profeta dentro de seus portões e a constante tentação do sincretismo. Obviamente, as suas seguem juntas. O empreendimento favorito do falso profeta era obscurecer a antítese entre os caminhos de Jeová e as práticas do paganismo. Desde os primeiros dias da conquista, a história de Israel se transformou numa história de sincretismo, pela qual o pensamento e os costumes pagãos foram assimilados pela comunidade do pacto. Foi a concessão à idolatria que destruiu Israel. A Babilônia foi a vara do castigo que Deus empunhou na disciplina do seu povo. O julgamento caiu sobre eles (como os profetas canônicos como Jeremias e Isaías haviam previsto) precisamente porque o povo judeu havia misturado as impurezas do paganismo com a fé entregue a eles por Deus.

O povo de Deus tem sempre vivido em antítese.Cada geração tem sido forçada a encarar os poderes sedutores do sincretismo. A história da igreja é repleta de exemplos de idéias pagãs introduzidas à força na corrente principal da igreja. Embora Aurélio Agostinho tenha sido um forte defensor do Cristianismo bíblico, ainda pode-se encontrar traços do pensamento neoplatônico e maniqueísta em sua obra. Isso é irônico porque o grande teólogo repudiava os dois sistemas pagãos e devotava muito do seu tempo a combater as suas teorias. Os conceitos gregos de imortalidade têm se movido gradativamente para dentro da teologia clássica. A teologia moderna tem sido influenciada pelas categorias de pensamento pós-kantianos, e alguns teólogos contemporâneos têm tentado conscientemente sintetizar Cristianismo e marxismo ou Cristianismo e existencialismo.

Robert Godfrey, presidente do Westminster Theological Seminary, em Escondido, Califórnia, recentemente sugeriu que eu escrevesse um livro sobre “o mito da influência”. Fiquei surpreso com a sugestão porque não sabia o que ele queria dizer. Ele explicou que essa expressão refere-se à inclinação evangélica moderna de “construir pontes” para o pensamento secular ou para grupos dentro da igreja maior que advoga teologias viciosas.

O elemento fictício é hipótese inocente de que se pode construir pontes que se movem em apenas uma direção. As pontes são normalmente construídas para permitir o tráfego entre as duas direções. O que acontece frequentemente quando nos relacionamos com outros é que nos tornamos os influenciados e não os influenciadores. Num esforço para ganhar pessoas para Cristo e sermos “cativantes”, podemos facilmente cair na armadilha de esvaziar o Evangelho do seu conteúdo, ajustando-o aos nossos ouvintes e removendo a ofensa inerente ao Evangelho. Com certeza, nosso próprio comportamento insensível pode adicionar uma ofensa ao Evangelho que não é propriamente parte do mesmo. Deveríamos nos esforçar diligentemente para evitar tal comportamento. Mas esvaziar o Evangelho dos elementos que os incrédulos acham repugnantes não é uma opção.

Martinho Lutero uma vez observou que onde quer que o Evangelho fosse pregado em sua pureza, engendraria conflito e controvérsia. Vivemos numa era que abomina a controvérsia e somos inclinados a evitar o conflito. Quão diferente é essa atmosfera da que marcou o trabalho dos profetas do Antigo Testamento e dos apóstolos do Novo Testamento! Os profetas estavam imersos no conflito e na controvérsia precisamente porque não ajustavam a Palavra de Deus às demandas da nação ligada ao sincretismo. Os apóstolos estavam continuamente engajados no conflito. Por mais que Paulo buscasse viver em paz com todos os homens, encontrava raros momentos de paz e pequenas pausas da controvérsia.

O fato de que gozamos de uma relativa proteção contra ataques violentos, pode indicar um amadurecimento da civilização moderna com relação à tolerância religiosa. Ou pode indicar que temos comprometido o Evangelho de tal forma que não mais provocamos o conflito que a fé verdadeira engendra.



Nossa visão dos Seres Humanos

Pesquisas feitas por George Barna e George Gallup revelam uma alarmante intrusão de idéias pagãs na crença de cristãos modernos. Uma maioria de evangélicos professos concorda com a declaração de que os seres humanos são basicamente bons, um repúdio claro à visão bíblica da degradação humana. A ironia aqui é que enquanto criticamos a influência maléfica do humanismo secular na cultura, estamos ocupados em adotar a visão humanista secular do homem. Não é tanto que a cultura secular tenha se desfeito da doutrina do pecado original, como o fato de que a igreja evangélica tenha feito isso.

Em parte alguma podemos encontrar uma evidência mais clara do impacto do secularismo no pensamento cristão do que na esfera da antropologia. A antropologia cristã não repousa meramente no conceito bíblico da criação, mas no conceito bíblico da queda. Virtualmente, cada denominação cristã tem, historicamente em seus credos e confissões, alguma doutrina do pecado original. Essas declarações confessionais não são totalmente concordantes quanto à extensão ou grau de pecado original, mas todas repudiam tudo o que é compatível com o humanismo. Contudo, pesquisas mostram que o povo evangélico advoga uma visão do homem mais em harmonia com o humanismo do que com a Bíblia e como os credos históricos do Cristianismo.

Depois do início da Reforma no século 16, um dos primeiros livros que Martinho Lutero escreveu foi o seu altamente controverso The Babylonian Captivity of the Church. Nesse volume, Lutero foi severamente crítico quanto ao desenvolvimento do sacerdotalismo na igreja Católica Romana. Ele acreditava que a visão defeituosa dos sacramentos estava afastando o povo da fé bíblica e conduzindo-o a um estranho evangelho.

O que Lutero pensaria dos herdeiros modernos da Reforma? Minha suposição é que ele escreveria sobre o cativeiro da igreja moderna ao pelagianismo. Penso que ele veria uma aliança ímpia entre o Cristianismo e o humanismo que reflete uma visão do homem mais pelagiana do que bíblica. Essa foi a origem do seu debate com o humanista cristão Erasmo de Rotterdam.

Embora Lutero proclamasse a doutrina da justificação apenas pela fé (sola fide), o “item sobre o qual a igreja se mantém ou cai”, ele estava convencido de que um problema mais perverso estava espreitando sob a superfície do debate sobre a justificação. Considerava seu livro The Bondage of the Will (A Escravidão do Arbítrio) como sua obra mais importante. Seu debate com Erasmo sobre o arbítrio do homem caído estava inseparavelmente relacionado ao seu entendimento da doutrina bíblica da eleição. Lutero chamava a doutrina da eleição de cor ecclesiae, o “coração da igreja”.

Na mente de Lutero, o grau de degradação humana não é um assunto trivial mas ataca o coração e a alma da vida cristã. Lutero viu o espectro de Pelágio na obra de Erasmo. A despeito das condenações históricas do ensino de Pelágio, ele exercia uma influência persistente sobre a igreja nos dias de Lutero.

Na sua “Introdução Histórica e Teológica” a uma edição do The Bondage of the Will, de Lutero, J. I. Packer e O. R. Johnson concluem com uma questão sobre a relevância contemporânea do debate:

“O que o leitor moderno e pensa sobre The Bondage of the Will? Indubitavelmente, ele admitirá prontamente que se trata de uma performance brilhante e estimulante, uma obra-prima da difícil arte do controversista; mas agora vem a pergunta: a hipótese de Lutero é parte da verdade de Deus? Se sim, ela tem uma mensagem para os cristãos de hoje? Sem dúvida, o leitor encontrará o modo pelo qual Lutero o conduz a um novo e estranho caminho, uma abordagem que, com toda a probabilidade, nunca considerou, uma linha de pensamento à qual ele normalmente taxaria de “Calvinista” e rapidamente a ignoraria. Isso é o que a própria ortodoxia luterana tem feito; e o cristão evangélico dos nossos dias (que tem um semipelagianismo em seu sangue) estará inclinado a faze o mesmo. Mas tanto a História quanto a Escritura, se admitidas, aconselham o contrário”.


Packer e Johnston descrevem o tratamento de Lutero do arbítrio como um “novo e estranho caminho” para o leitor moderno, uma abordagem nunca considerada pelos evangélicos atuais que têm um semipelagianismo no sangue. Essa avaliação faz eco à observação do Roger Nicole de que “somos, por natureza, pelagianos em nosso pensamento”. A regeneração também não cura automaticamente essa tendência natural. Mesmo depois de o Espírito Santo nos libertar da escravidão moral, temos a tendência de desprezar a seriedade dessa escravidão.

Packer e Johnston prosseguem dizendo: “Historicamente, é simplesmente comum que Martinho Lutero e Calvino e, quanto a isso, Ulrich Zwinglio, Martin Bucer e todos os líderes teólogos protestantes do primeiro período da Reforma, insistissem precisamente na mesma base aqui. Em outros pontos, eles tiveram as suas diferenças; mas ao afirmarem a impotência do homem quanto ao pecado e a soberania do Deus na graça, eles concordavam inteiramente. Para todos eles, essas doutrinas eram a própria vida-sangue (essência) da fé cristã”.

A metáfora da “vida-sangue” é consistente com a metáfora de Lutero do “coração” no cor e ecclesiae. A visão dos reformadores quanto à inabilidade moral do pecador em inclinar-se em direção à graça de Deus não era um assunto secundário ou trivial para eles. À essa luz, eles considerariam a comunidade evangélica contemporânea como se esta sofresse de uma hemofilia teológica, como perigo de sangrar até a morte.

Voltemos ao trabalho introdutório de Packer e Johnston:

“A doutrina da justificação pela fé foi importante para eles porque salvaguardava o princípio da graça soberana; mas, na verdade, para eles, expressava apenas um aspecto desse princípio e não o seu aspecto mais profundo. A soberania da graça encontrava expressões no seu pensamento num nível ainda mais profundo, na doutrina da regeneração monergística – a doutrina, isto é, que a fé que se recebe Cristo para justificação é, em si mesma, um dom livre de um Deus soberano, conferido por meio de uma regeneração espiritual no ato do chamado eficaz. Para os reformadores, a questão crucial não era simplesmente se Deus justifica os crentes sem as obras da lei. Era a questão mais ampla, se os pecadores são totalmente impotentes nos seus pecados, e se devemos pensar que Deus os salva mediante uma graça invencível, incondicional e livre, não apenas os justificando em nome de Cristo quando chegam à fé, mas também os ressuscitando da morte do pecado pelo estímulo do Espírito a fim de conduzi-los para a fé. Aqui estava a questão crucial: se Deus é o autor, não somente da justificação, mas também da fé; se, em última análise, o Cristianismo é uma religião de absoluta confiança em Deus para a salvação e todas as coisas necessárias a ela, ou de autoconfiança e esforço próprio”.


Regeneração e Fé

O tema clássico entre a teologia agostiniana e todas as formas do semipelagianismo concentra-se num aspecto da ordem da salvação (ordo salutis): Qual é a relação entre regeneração e fé? A regeneração é uma obra monergística ou senergística? Uma pessoa deve primeiramente exercer a fé a fim de nascer de novo? Ou o novo nascimento deve ocorrer antes da pessoa estar apta para exercer a fé? Outro modo de colocar a questão é: A graça da regeneração é operante ou cooperativa?

A regeneração monergística significa que ela é alcançada por um simples protagonista, Deus. Significa literalmente “obra de um”. O sinergismo, por outro lado, refere-se à obra que envolve a ação de duas ou mais partes. Trata-se de uma obra em co-autoria. Todas as formas de semipelagianismo insistem em algum tipo de sinergismo na obra da regeneração. Usualmente, a graça assistente de Deus é vista como um ingrediente necessário mas dependente da cooperação humana para a sua eficácia.

Os reformadores pensavam que a regeneração não apenas precede a fé mas também que ela deve preceder a fé. Por causa da escravidão moral do pecado não-regenerado, este não pode ter fé antes que tenha sido mudado interiormente pela obra operante e monergística do Espírito Santo. A fé é fruto da regeneração, não a sua causa.

De acordo com o semipelagianismo, a regeneração é trabalhada por Deus, mas somente naqueles que primeiramente responderam a ele em fé. A fé é vista não como fruto da regeneração, mas como um ato de vontade que coopera com a oferta da graça de Deus.

Os evangélicos são assim chamados por causa do seu compromisso com a doutrina bíblica e histórica da justificação somente pela fé. Porque os reformadores viram o sola fide como central e essencial ao Evangelho bíblico, o termo evangélico foi aplicado a eles. Os evangélicos modernos, em grande número, adotam o sola fide da Reforma, mas têm jogado fora o sola gratia que lhe serve de base. Packer e Johnston afirmam:

“‘A justificação apenas pela fé’ é uma verdade que precisa de interpretação. O princípio de sola fide não pode ser corretamente entendido até que seja visto como ancorado no princípio mais amplo do sola gratia. Qual é a fonte e o status da fé? É o meio dado por Deus pelo qual a justificação dada por Deus é recebida, ou é uma condição da justificação deixada para o homem cumprir? É uma parte do dom de Deus da salvação, ou é a própria contribuição do homem para a salvação? A nossa salvação vem totalmente de Deus, ou depende finalmente de algo que fazemos por nós mesmos? Aqueles que afirmam este último (como os arminianos fizeram mais tarde) negam, desse modo, a impotência absoluta do homem quanto ao pecado, e afirmam que uma forma de semipelagianismo é, afinal, verdadeira. Então, não é surpresa que a teologia reformada posterior tenha condenado o arminianismo como sendo, em princípio, um retorno a Roma (porque, na prática, transformava a fé numa obra meritória) e uma traição à Reforma (porque negava a soberania de Deus em salvar pecadores, o que foi o princípio teológico mais profundo e religioso do pensamento dos reformadores). De fato, o arminianismo foi, aos olhos reformados, uma renúncia ao Cristianismo do Novo Testamento em favor do judaísmo do Antigo Testamento; porque confiar em si mesmo para a fé não é diferente do princípio de confiar em si mesmo para as obras , e um é tanto não-cristão e anticristão quanto o outro. À luz do que Lutero disse a Erasmo, não há dúvida de que ele teria endossado esse julgamento”.


Devo confessar que a primeira vez que li este parágrafo, pestanejei. Na superfície, parece ser uma acusação severa ao arminianismo. De fato, dificilmente poderia ser mais severo do que falar dele como “não-cristão” ou “anticristão”. Isso significa que Packer e Johnston crêem que os arminianos não são cristãos? Não necessariamente. Cada cristão comete erros de algum tipo em seu pensamento. Nossas visões teológicas são falíveis. Qualquer distorção em nosso pensamento, qualquer afastamento das categorias bíblicas, puras, pode ser livremente considerado “não cristãos” ou “anti-cristãos”. O fato de que o nosso pensamento contém elementos não cristãos não demanda uma inferência de que, conseqüentemente, não somos cristãos de forma alguma.

Concordo com Packer e Johnston quanto ao fato de que o arminianismo contém elementos não-cristãos e que a sua visão de relação entre fé e regeneração é fundamentalmente não-cristã. Esse erro é tão chocante que se torna fatal para a salvação? As pessoas freqüentemente perguntam se eu creio que os arminianos são cristãos. Normalmente eu respondo, “Sim, por um triz”. Eles são cristãos pelo que chamamos de inconsistência feliz.

Qual é essa inconsistência? Os arminianos afirmam a doutrina da justificação apenas pela fé. Eles concordam que não temos obras meritórias que contam para a justificação, que a nossa justificação repousa unicamente na justiça e mérito de Cristo, que o sola fide significa que a justificação se dá unicamente por meio de Cristo e que não devemos confiar em nossas próprias obras, mas na obra de Cristo para a nossa salvação. Em tudo isso eles diferem de Roma em pontos cruciais.

Packer e Johnston notam que a teologia reformada posterior, no entanto, condenou o arminianismo como uma traição à Reforma e, em princípio, como um retorno à Roma. Eles mostram que o arminianismo “na prática, transformou a fé em obra meritória”.

Notamos que essa acusação é classificada pelas palavras na prática. Usualmente, os arminianos negam que a sua fé seja uma obra meritória. Se insistissem que a fé é uma obra meritória, eles estariam explicitamente negando a justificação apenas pela fé. O arminiano confessa que a fé é algo que uma pessoa faz. É uma obra, embora não meritória. É uma boa obra? Certamente não é má. É bom para uma pessoa confiar em Cristo e somente em Cristo para a sua salvação. Desde que Deus nos ordena confiar em Cristo e somente em Cristo para sua salvação. Desde que Deus nos ordena confiar em Cristo, quando assim o fazemos, estamos obedecendo a essa ordem. Mas todos os cristãos concordam que fé é algo que fazemos. Deus não realiza o crer para nós. Também concordamos que a nossa justificação é mediante a fé tanto a fé é a causa instrumental da nossa justificação. Tudo o que o arminiano deseja e pretende afirmar é que o homem tem a habilidade de exercer a causa instrumental da fé sem ser primeiramente regenerado. Essa posição claramente nega o solo gratia, mas não necessariamente o sola fide.

Então, por que dizer que o arminianismo “na prática” faz com que a fé seja uma obra meritória? Porque a resposta positiva que as pessoas dão ao Evangelho se torna o fator determinante final na salvação. Freqüentemente pergunto aos meus amigos arminianos por que eles são cristãos e outras pessoas não. Eles dizem que é porque eles crêem em Cristo enquanto outros não. Então eu pergunto por que eles crêem e outros não. “É porque vocês são mais justos do que as pessoas que permanecem na incredulidade?” Eles respondem rapidamente que não. “É porque vocês são mais inteligentes?” Novamente a resposta é negativa. Eles dizem que Deus é gracioso o suficiente para oferecer salvação ato dos os que crêem e que ninguém pode ser salvo sem essa graça. Mas essa graça é uma graça cooperativa. O homem, no seu estado caído, deve estender a mão e agarrar essa graça por meio de um ato de vontade que é livre para aceitá-la ou rejeitá-la. Alguns exercitam a vontade corretamente (ou justamente), enquanto outros não. Quando chega nesse ponto, o arminiano acha difícil escapara da conclusão de que, em última análise, sua salvação baseia-se em algum ato justo de vontade que realizou. Ele, “na pratica”, tornou-se merecedor do mérito de Cristo, o que difere apenas levemente da visão de Roma.

Ao concluírem sua introdução à obra de Lutero, The Bondage of the Will, Packer e Johnston escreveram:

“Essas coisas precisam ser ponderadas pelos protestantes de hoje. Com que direito podemos nos chamar de filhos da Reforma? Muito do protestantismo moderno não teria pertencido nem sido reconhecido pelos reformadores pioneiros... À luz do [The Bondage of the Will], somos forçados a perguntar se o Cristianismo protestante não tem tragicamente vendido seu direito de primogenitura em algum lugar entre os dias de Lutero e os nossos dias. O protestantismo atual não tem se tornado mais erasmiano do que luterano? Não tentamos freqüentemente minimizar e atenuar as diferenças doutrinárias em nome da paz entre os grupos?... Não crescemos acostumados com um tipo de ensino erasmiano em nossos púlpitos – uma mensagem baseada nas mesmas concepções sinergísticas rasas que Lutero refutou, que retratam Deus e o homem se aproximando um do outro quase em termos iguais, cada um tendo sua própria contribuição a fazer para a salvação do homem e cada um dependendo da cooperação submissa do outro para a realização desse fim?”...


Packer e Johnston requerem uma revolução Copérnica moderna em nosso pensamento que iria mudar radicalmente a nossa pregação, o nosso evangelismo e a vida geral da igreja. A graça e a glória de Deus estão em questão.


Livre-arbítrio e Eleição

Quando o tema do livre-arbítrio é debatido na igreja moderna, o debate usualmente é centrado nos temas mais amplos da eleição e predestinação. Embora esses assuntos sejam certamente relacionados, não são exatamente o contexto do debate entre Pelágio e Agostinho e, posteriormente, entre Erasmo e Lutero. A doutrina da eleição certamente serviu com o tema mais amplo, mas o debate mais específico foi sobre a relação do livre-arbítrio com o pecado original e com a graça de Deus.

Quando o livre-arbítrio é debatido com referência à predestinação, normalmente ele é ligado à soberania de Deus. Se Deus é soberano, o homem pode verdadeiramente ser livre? Alguns têm sustentado que o livre-arbítrio e a soberania divina são verdades gêmeas ensinadas pela Escritura e que coexistem na tensão de uma dialética não-solucionável. Diz-se que elas transcendem todas as tentativas racionais de se resolvê-las. Envolvem uma contradição ou, pelo menos, um paradoxo severo.

Embora a relação entre a soberania divina e a liberdade humana possa ser misteriosa, isso não significa, de forma alguma, que elas sejam contraditórias. A antítese da soberania divina não é a liberdade humana, mas a autonomia humana. A autonomia representa um grau de liberdade que não é limitada por qualquer autoridade ou poder maior.

Se Deus é soberano, então o homem não pode ser autônomo. Inversamente, se o homem é autônomo, então Deus não pode ser soberano. Os dois conceitos são mutuamente exclusivos. Alguns afirmam que a soberania de Deus é limitada pela liberdade humana. Se esse for o caso, então o homem, não Deus, seria soberano. Deus estaria sempre limitado pelas decisões humanas e lhe faltaria o poder ou autoridade para exercer a sua vontade contra a vontade da criatura. Quando se diz que a soberania de Deus é limitada pela liberdade humana, no entanto, uma visão tão grosseira como a mencionada acima não é normalmente o que se pretendia. A maioria dos cristãos admite que Deus tem tanto o poder quanto a autoridade para prevalecer sobre as decisões humanas. O que se quer dizer é que Deus nunca imporia sua vontade sobre a criatura usando alguma forma de coerção. Alguns falam de uma autolimitação de Deus em tais assuntos. Ele escolhe se limitar, dizem, no nível das decisões humanas.

A teologia agostiniana é freqüentemente acusada de reduzir o homem a um fantoche cujas cordas são manuseadas pelo Deus soberano. Tal criatura dificilmente pode exercer uma responsabilidade moral. Um fantoche é meramente um pedaço de madeira cujos movimentos são dirigidos por cordas presas a ele. Ele não é hilozoístico; não tem poder ou habilidade para mover-se. Um fantoche não pode pensar, sentir ou responder com afeições.

A metáfora do oleiro e do vaso deixa de ser uma metáfora e se torna uma descrição ontológica realista. Se o homem é um fantoche, ele não é substancialmente diferente de uma peça de barro nas mãos do oleiro. O barro não tem nenhuma vontade. Não toma decisões. Não tem consciência. Não tem inclinações, sejam morais ou não. É inerte e completamente passivo.

A realidade do livre-arbítrio vai ao coração da antropologia cristã. Sem a intenção de fazer trocadilhos, a Escritura descreve o homem como tendo um coração e sendo um agente moral responsável. Sem uma vontade funcional, sua função moral perece. É reduzido a uma fraude, uma mera quimera sem realidade substantiva.

Do outro lado da equação está o caráter de Deus. Ele é soberano, mas também tem outros atributos. Sua soberania não faz sombra à sua santidade e justiça. Ela é uma soberania santa e justa. É essa justiça que interessa àqueles que discutem o livre-arbítrio. Se o homem “não tem escolha” e á meramente um instrumento passivo da soberania divina, então certamente parece que Deus seria injusto em considerar as criaturas por suas ações e puni-las por fazerem o que são incapazes de não fazer.

O modo como entendemos a vontade do homem, então, tem um peso enorme na visão que temos da nossa humanidade e do caráter de Deus. O debate antigo entre o pelagianismo e o agostinianismo a respeito desses temas está encerrado. Qualquer visão de vontade humana que destrói a visão bíblica de responsabilidade humana é seriamente defeituosa. Qualquer visão de vontade humana que destrói a visão bíblica do caráter de Deus é ainda pior. O debate irá afetar o nosso entendimento da justiça, soberania e graça de Deus. Todos esses itens são vitais para a teologia cristã. Se ignorarmos esses temas ou considerá-los triviais, degradamos extensamente o caráter total de Deus como revelado nas Escrituras. O que se segue é um reconhecimento histórico do debate sobre o livre-arbítrio como tem se exaurido na história do Cristianismo.

O próximo artigo a ser publicado é SOMOS CAPAZES DE OBEDECER: PELÁGIO

Somos Capazes de Obedecer: Pelágio

SOLA GRATIA – A CONTROVÉRSIA SOBRE O LIVRE-ARBÍTRIO NA HISTÓRIA



Somos Capazes de Obedecer: Pelágio

O nome pelagianismo tem sua origem a partir de um monge britânico que se engajou num debate ardente com Agostinho na igreja primitiva. Presumivelmente nascido na Irlanda, Pelágio tornou-se monge e eunuco. Movido em sua alma, ele chamava a igreja para uma perseguição vigorosa da virtude e até mesmo da perfeição moral. Passou muitos anos em Roma onde Coelestius e Juliano de Eclanum, o bispo que se tornara viúvo ainda jovem, se juntaram a ele no seu conflito com Agostinho. Dos três, Juliano era o mais culto. Também era o mais agressivo na controvérsia, embora tenha sido menos agitador do que Coelestius.

Adolph Harnack diz que Pelágio foi “levado à ira por uma cristandade inerte, que se desculpava alegando fragilidade da carne e a impossibilidade do cumprimento dos mandamentos opressivos de Deus”. De acordo com Harnack, Pelágio “pregava que Deus não havia ordenado nada impossível, que o homem possuía o poder de fazer o bem se assim o desejasse e que a fraqueza da carne era meramente um pretexto.”.

O princípio controlador do pensamento de Pelágio era a convicção (observada por Harnack) de que Deus nunca ordena o que é impossível para o homem realizar. Para Pelágio, esse não era um princípio teológico abstrato mas um assunto que acarretava conseqüências práticas urgentes para a vida cristã. Ele se levantou inicialmente contra Agostinho por causa de uma oração que Agostinho havia escrito: “Concede o que tu ordenaste, e ordena o que tu desejas”.

Pelágio não discordava da última frase dessa oração. Na verdade, é virtualmente supérflua. Deus tem o direito de ordenar tudo o que deseja. Esta, claramente, é uma prerrogativa divina. A suposição, naturalmente, é de que o que Deus deseja de suas criaturas nunca será frívolo ou mal. Essa parte da oração de Agostinho não indica que Deus precisa de permissão humana para legislar seus mandamentos, mas refletia, em seu lugar, a postura de humilde submissão de Agostinho quanto ao direito divino de lei.

Pelágio exasperou-se com a primeira parte da oração de Agostinho: “Concede o que tu ordenaste...”. O que Agostinho estava pedindo que Deus concedesse? Não poderia ser sua permissão, porque a criatura nunca precisa pedir permissão para fazer o que havia sido ordenado. Na verdade, ele precisaria de permissão para não fazê-lo. Agostinho, obviamente, estava pedindo outra coisa, algum tipo de dom para atender ao comando. Pelágio acertadamente supôs que Agostinho estava orando pelo dom da graça divina que viria na forma de algum tipo de assistência.

Pelágio levantou a seguinte questão: A assistência da graça é necessária para o ser humano obedecer aos comandos de Deus? Ou esses comandos podem ser obedecidos sem essa assistência? Para Pelágio, a ordem de obedecer implicava habilidade para obedecer. Isso se aplicaria não apenas à lei moral de Deus mas também aos comandos inerentes ao Evangelho. Se Deus ordena que as pessoas creiam em Cristo, então elas devem ter o poder de crer em Cristo sem a ajuda da graça. Se Deus ordena que os pecadores se arrependam, eles devem ter a habilidade de se inclinarem para obedeceram ao comando. A obediência não precisa, de forma alguma, ser “concedida”.

A questão entre Pelágio e Agostinho era clara. Não estava ofuscada por argumentos teológicos intrincados, especialmente no começo. “Nunca houve, talvez, uma outra crise de igual importância na história da igreja na qual os oponentes tenham expressado os princípios em debate tão clara e abstratamente”, diz Harnack. “Somente a disputa Ariana antes do Concílio de Nicéia pode ser comparada a ela...”.

Para Pelágio, a natureza não requer graça a fim de cumprir suas obrigações. O livre-arbítrio, adequadamente exercido, produz virtude, que é o bem supremo e devidamente seguido pela recompensa. Por meio do seu próprio esforço, o homem por alcançar tudo o que se requer dele na moralidade e na religião.


Dezoito Premissas

Ao resumir os principais dogmas do pensamento de Pelágio, seguirei o esboço fornecido por Harnack no seu History of Dogma. A base do pensamento de Pelágio é a premissa de que os mais altos atributos de Deus são a sua bondade e justiça. Para Pelágio, esses atributos são a condição sine qua non do caráter divino. Sem os mesmos, Deus não seria Deus. É inconcebível um Deus que carece da perfeição da bondade e da justiça.

A segunda premissa sobre a qual Pelágio elabora é: se Deus é completamente bom, então tudo o que criou é igualmente bom. Toa a sua criação é boa, incluindo o homem. “Adão... foi criado por Deus sem pecado e inteiramente competente para todo o bem, com um espírito imortal e um corpo mortal”, observa Philip Schaff, resumindo a visão de Pelágio. “Ele [Adão] foi dotado com razão e livre-arbítrio. Com sua razão, ele deveria ter o domínio sobre todas as criaturas irracionais; com o seu livre-arbítrio, ele deveria servir a Deus. A liberdade é o bem supremo, a honra e a glória do homem, o bonum naturae, que não pode ser perdido. É a base única da relação ética do homem com Deus, que não teria um culto relutante. Ela consiste... essencialmente no liberum arbitrum, ou na possibilitas boni et mali; liberdade de escolha e na habilidade absolutamente semelhante para o bem ou mal a cada momento”.

Pelágio arraigou sua visão da natureza humana e do livre-arbítrio na sua doutrina da criação. O livre-arbítrio consiste essencialmente na habilidade de se escolher entre o bem e o mal. Essa habilidade ou possibilidade é a própria essência do livre-arbítrio, de acordo com Pelágio. Essa habilidade é dada ao homem por Deus na criação, e é um aspecto essencial da natureza constituinte do homem.

A terceira premissa de Pelágio é que a natureza foi criada não apenas boa mas incontestavelmente boa. Isso é verdade “porque as coisas da natureza persistem desde o início da existência (substância) até o seu fim”. Schaff diz de Pelágio:

“Ele vê a liberdade na sua forma apenas, e em seu primeiro estágio, e lá ele fixa e a deixa, no equilíbrio perpétuo ente o bem e o mal, pronta para se decidir por qualquer um a qualquer momento. Ela não tem passado ou futuro; absolutamente independente de tudo, seja interior ou exterior; um vácuo que pode se fazer pleno e, então, tornar-se um vácuo novamente; uma tábula rasa, sobre a qual o homem pode escrever tudo o que lhe agrada; uma escolha impaciente, a qual, depois de cada decisão, reverte-se à indecisão e oscilação. A vontade humana é como se fosse o eterno Hércules na encruzilhada, que dá o primeiro passo para a direita e o segundo para a esquerda e sempre volta à primeira posição”. Philip Schaff – History of the Christian Church.


Se a vontade do homem é uma tábula rasa perpétua, então quando uma pessoa peca, a natureza da vontade não passa por uma mudança e nem por uma deformação. Não há uma corrupção inerente no homem. Não há predisposição ou inclinação para o pecado que é, em si mesma, um resultado do pecado. Cada ato de pecado flui de um novo começo, um bloco limpo de papel que não é inscrito a priori com alguma predileção.

A quarta premissa de Pelágio é que a natureza humana, como tal, é inalteravelmente boa. Istoé, a essência constituinte do homem permanece boa. A natureza não pode ser alterada na sua substância; só pode ser modificada acidentalmente. O termo acidentalmente aqui não significa que algo acontece sem intenção como um resultado do infortúnio. Ele refere-se à distinção de Aristóteles entre a substância de um objeto e seus accidens. Accidens refere-se ao que é exterior a alguma coisa, as qualidades perceptíveis, qualidades que estão na periferia e não são essenciais ao ser desse algo. O comportamento de alguém pode ser mudado quando ele comete atos pecaminosos, mas essas ações não mudam a natureza desse alguém.

A quinta premissa de Pelágio, que se segue a partir das quatro primeiras, é que o mal ou pecado nunca pode transformar-se em natureza. Ele define o pecado côo um desejo de fazer o que a justiça proíbe, do qual somos livres para nos abstermos e, assim, podemos sempre evitá-lo pelo exercício adequado da nossa vontade. O pecado é sempre um ato e nunca uma natureza. Caso contrário, Pelágio insiste, Deus seria o autor do mal. Os atos pecaminosos nunca podem causar uma natureza pecaminosa, e o mal também não pode ser herdado. Se pudesse, então a bondade e a justiça de Deus estariam destruídas.

Na sua sexta premissa, Pelágio explica que o pecado existe como o resultado das armadilhas de Satanás e da concupiscência sensual. Essas tentações ao pecado podem ser superadas pelo exercício da virtude. Nem a lascívia ou a concupiscência surgem da essência do homem mas é “extrínseca” a ela. Essa concupiscência não é, em si mesma, má, porque até mesmo Cristo estava sujeito a ela. Isso dá origem à formulação histórica com reação à concupiscência: ela é do pecado e inclina ao pecado mas não é, em si mesma,pecado.

A sétima premissa conclui que sempre permanece a possibilidade e, na verdade, a realidade dos homens sem pecado. O homem pode ser perfeito e alguns têm sido. Essa tese rejeita categoricamente qualquer doutrina do pecado original, isto é, que os homens têm a natureza corrupta como resultado da queda de Adão. Isso conduz às teses nas quais Pelágio descreve a condição de Adão e de sua progenitura.

A oitava premissa é que Adão foi criado com livre-arbítrio e uma santidade natural indubitável. Essa santidade natural compreendia a liberdade da sua vontade e da sua razão. Uma vez que essas faculdades eram dons dados por Deus na criação, podiam ser consideradas dons da graça. Não foram adquiridas por Adão, mas eram dons inerentes na sua criação.

A nona premissa é que Adão pecou por vontade própria. Ele não foi coagido por Deus ou por qualquer outra criatura a cometer o primeiro ato de pecado. Esse pecado não resultou na corrupção da sua natureza. Nem causou a morte natural porque Adão foi criado mortal. O pecado de Adão resultou, sim, em “morte espiritual”, que não era a perda da habilidade moral ou uma corrupção inerente, mas a condenação da alma por causa do pecado.

A décima premissa é que a progenitura de Adão não herdou a morte natural e nem a morte espiritual. Sua descendência morreu porque também era mortal. Se seus descendentes experimentaram a morte espiritual, isso se deu porque, de forma semelhante, também pecaram. Eles não experimentaram a morte espiritual por causa de Adão.

A décima primeira premissa afirma que nem o pecado de Adão nem sua culpa foram transmitidos à sua descendência. Pelágio considerava a doutrina do pecado transmitido (tradux peccati) e a do pecado original (peccatum originis) como uma doutrina blasfema arraigada no maniqueísmo. Pelágio insistia que seria injustiça de Deus transmitir ou imputar o pecado de um homem a outros. Deus não introduziria novas criaturas a um mundo onerado com o peso de um pecado que não era delas. O pecado original envolveria uma mudança na natureza constituinte do homem de boa para má. O homem se tornaria naturalmente mau. Se o homem fosse mau por natureza, tanto antes quanto depois do pecado de Adão, então Deus seria novamente considerado o autor do mal. Se a natureza do homem se tornou pecaminosa ou má, então estaria também acima da redenção. Se o pecado original fosse natural, então Cristo teria de possuí-lo e seria incapaz de se redimir, muito menos a qualquer outra pessoa.

Schaff faz a seguinte observação sobre essa dimensão da antropologia de Pelágio: “Pelágio , destituído da idéia do todo orgânico da raça ou da natureza humana, via Adão meramente como um indivíduo isolado; ele não deu a Adão nenhum lugar representativos, logo seus atos não acarretavam conseqüências além de si mesmo. Em sua visão, o pecado do primeiro homem consistiu de um único e isolado ato de desobediência ao comando divino. Juliano o compara à ofensa insignificante de uma criança que se permite ser desencaminhada por alguma tentação sensual mas que depois se arrepende de sua falha... Esse ato de transgressão único e desculpável não gerou conseqüências à alma e nem ao corpo de Adão, muito menos à sua posteridade, onde todos se mantêm ou caem por si mesmos”.

Para Pelágio, não há conexão entre o pecado de Adão e o nosso. A idéia de que o pecado poderia ser propagado via geração humana é absurda. “Se seus próprios pecados não prejudicam os pais depois da sua conversão”, diz Pelágio, “muito menos os pais podem prejudicar sues filhos”.

Sua décima segunda premissa concluiu que todos os homens são criados por Deus na mesma posição que Adão gozava antes da queda. Há duas diferenças entre Adão e sua descendência, mas essas diferenças não são essenciais. A primeira é que Adão foi criado como um adulto; sua descendência, como infantes. Adão teve o uso total da razão desde o início, ao passo que sua descendência teve de desenvolver sua habilidade quanto à razão. A segunda diferença é que Adão foi colocado num jardim paradisíaco onde não prevalecia o costume do mal; sua descendência nasce em uma sociedade ou ambiente no qual o costume do mal prevalece. No entanto, as crianças ainda nascem sem pecado.

Por que, então, a universalidade virtual do pecado? Pelágio a atribuiu à imitação e à longa prática do pecado: “Porque nenhuma outra causa faz com que tenhamos dificuldade de fazer o bem do que o longo costume dos vícios que nos infectam desde a infância e gradualmente, através dos anos, nos corrompem e, assim, nos mantém obrigados e devotados a eles, parecendo, de alguma forma, ter a força da natureza”.

Nessa passagem, Pelágio parece chegar perto de admitir o pecado original. A palavra-chave, no entanto, é parecendo. O pecado, na verdade, não tem “a força da natureza”, a despeito da sua presença difundida. Num sentido, Pelágio está oferecendo uma explicação para a razão pela qual outros têm sido atraídos pela idéia do pecado original.

Sua décima terceira premissa é que o hábito de pecar enfraquece a vontade. Esse enfraquecimento, no entanto, deve ser entendido no sentido acidental. O costume de pecar obscurece o nosso pensamento e nos conduz aos maus hábitos. Mas esses hábitos descrevem uma prática, não algo que realmente “habita a vontade”. A vontade não é enfraquecida; ela não passa por uma mudança constituinte. Ela ainda retém a postura da indiferença sempre que uma decisão ética ou moral precisa ser tomada.

A décima quarta premissa de Pelágio revela o início de um conceito de graça: A graça facilita a bondade. A graça de Deus faz com que seja mais fácil para nós sermos justos. Ela nos assiste em nossa busca da perfeição. Ms o ponto crucial de Pelágio é que, embora a graça facilite a justiça, ela não é, de forma alguma, essencial para que alcancemos essa justiça. O homem pode e deveria ser bom sem a ajuda da graça.

“A resolução pelagiana do paradoxo da graça foi baseada numa definição de graça fundamentalmente diferente da definição agostiniana, e foi aí que o debate apertou”, observa Jaroslav Pelikan. “Espalhou-se que Pelágio estava ‘contestando a graça de Deus’. Seu tratado sobre a graça dava a impressão de concentrar-se 'apenas no tópico da faculdade e capacidade da natureza, enquanto fez com que a graça de Deus consistisse quase que inteiramente disso’. Nesse livro, parecia que ‘com cada argumento possível, ele defendia a natureza do homem contra a graça de Deus, pela qual o ímpio é justificado e pela qual nós somos cristãos’”.

A décima quinta premissa declara que a graça fundamental que Deus dá é aquela dada na criação. Essa graça é tão gloriosa que alguns gentios e judeus têm alcançado a perfeição.

A décima sexta premissa denota a graça dada por Deus, em sua lei, a graça de instrução e iluminação. Essa graça nada faz interiormente, mas produz uma definição clara de natureza da bondade. Nas categorias clássicas da virtude, duas coisas distintas foram requeridas: o conhecimento do bem e o poder moral para fazer o bem. Ambos são facilitados pela instrução e iluminação da lei.

A graça é dada não apenas pela lei, mas também , de acordo com a décima sétima premissa, por meio de Cristo. Essa graça é também definida como illuminatio et doctrina. A principal obra de Cristo foi nos fornecer um exemplo.

Pelágio escreve [numa carta]: “Nós, os que fomos instruídos pela graça de Cristo e nascidos de novo para uma humanidade melhor, que formos expiados e purificados pelo seu sangue e incitados à justiça perfeita pelo seu exemplo, devemos ser melhores do que aqueles que existiram antes da lei, e melhores também do que aqueles que estiveram sob a lei”; mas o argumento total dessa carta, em que o tópico é simplesmente o conhecimento da lei como meio para a promoção da virtude, e também a declaração de que Deus abre os nossos olhos e revela o futuro “quando nos ilumina como o dom multiforme e inefável da graça celestial”, prova que para ele... a “assistência de Deus” consiste, no final, apenas em instrução”.

A doutrina da graça de Pelágio é meramente o outro lado da sua doutrina do pecado. Por todo o seu pensamento, permanece a afirmação fundamental da inconversibilidade da natureza humana. Tendo sido criado boa, ela sempre permanece boa.

Sua última ou décima oitava premissa é que a graça de Deus é compatível com sua justiça. A graça não fornece benefício adicional à natureza humana, mas é dada por Deus de acordo com o mérito. Em última análise, a graça é merecida.

Podemos resumir os dezoito pontos do pensamento pelagiano como se segue:

01 – Os mais altos atributos de Deus são sua retidão e justiça.
02 – Tudo o que Deus criou é bom.
03 – Como algo criado, a natureza não pode ser mudada na sua essência.
04 – A natureza humana é inalteravelmente boa.
05 – O mal é um ato que nós podemos evitar.
06 – O pecado vem via armadilhas satânicas e concupiscência sensual.
07 – Pode haver homens sem pecado.
08 – Adão foi criado com livre-arbítrio e santidade natural.
09 – Adão pecou por livre vontade.
10 – A descendência de Adão não herdou dele a morte natural.
11 – Nem o pecado de Adão nem sua culpa foram transmitidos.
12 – Todos os homens são criados como Adão era antes da queda.
13 - O hábito de pecar enfraquece a vontade.
14 – A graça da criação produz homens perfeitos.
16 – A graça da lei de Deus ilumina e instrui.
17 – Cristo trabalha principalmente pelo seu exemplo.
18 – A graça é dada de acordo com a justiça e mérito.


O Curso da Controvérsia

A controvérsia pelagiana surgiu por volta de 411 ou 412 em Cartago. Coelestius, discípulo de Pelágio, tentava ser nomeado presbítero em Cartago. Paulinius o denunciou com a acusação de que ele ensinava que o batismo de infantes não objetivava a purificação do pecado. Harnack lista os itens da denúncia de Paulinius: Pelágio ensinava “que Adão foi feito mortal e teria morrido se tivesse ou não pecado – que o pecado de Adão só trouxe prejuízo a ele mesmo e não à raça humana – infantes, quando nascem, estão no estado em que Adão estava antes do seu erro – que a raça humana não morre por causa da morte de Adão e do seu erro e nem ressuscitará em virtude da ressurreição de Cristo – tanto a lei quanto o Evangelho admitem os homens no reino dos céus – mesmo antes do advento de nosso Senhor, houve homens impecáveis, isto é, homens sem pecado – que o homem pode estar sem pecado e pode facilmente manter os comandos divinos se assim o desejar”.

O Sínodo de Cartago excomungou Coelestius. Ele, então, retirou-se para Éfeso onde conseguiu tornar-se presbítero. Enquanto isso, Pelágio, desejando evitar qualquer grande controvérsia, havia viajado para a Palestina. Antes disso, havia visitado Hipona, mas Agostinho estava fora e assim, não se encontraram. De Jerusalém, Pelágio escreveu uma carta lisonjeira a Agostinho. Este respondeu com uma carta cortês mas cautelosa. Agostinho ainda estava se recuperando da pressão da controvérsia donatista e sabia pouco sobre a controvérsia que estava se formando em Cartago com Coelestius. Agostinho recebeu notícias de Jerusalém de que o ensino de Pelágio estava causando um tumulto por lá.

Osório, um amigo e discípulo de Agostinho, solicitou uma sindicância contra Pelágio em 415, mas Pelágio foi exonerado. Em dezembro desse ano, um sínodo palestino denunciou alguns dos escritos de Pelágio. Quando o sínodo exigiu que ele renunciasse ao seu ensino de que o homem pode estar sem pecado sem a ajuda da graça, Pelágio capitulou. Ele disse, “eu os anatemizo como insensatos, não como heréticos, visto não ser caso de dogma”. Ele repudiou o ensino de Coelestius, dizendo: “Mas as coisas que declarei não serem minhas, eu, de acordo com a opinião da santa igreja, reprovo, pronunciando um anátema a todo aquele que se opuser”.

Como resultado, Pelágio foi pronunciado ortodoxo. Reinhold Seeberg chama a resposta de Pelágio de “mentira covarde”. Isso deixou Pelágio com a difícil tarefa de recuperar a sua credibilidade diante de seus próprios defensores. Ele escreveu quatro livros, incluindo De Natura e De Libero Arbítrio para elucidar suas opiniões.

A igreja da África do Norte não estava satisfeita com os resultados do sínodo. Jerônimo o chamou de “sínodo miserável” e Agostinho disse, “não foi a heresia que foi absolvida lá, mas o homem que a negou”. Dois sínodos norte-africanos aconteceram em 416, e ambos condenaram o pelagianismo. Uma carta dos procedimentos foi enviada ao papa Inocêncio, e esta foi seguida por outra carta de cinco bispos norte-africanos, incluindo Agostinho. Pelágio reagiu com uma carta sua. O papa Inocêncio se agradou em ser consultado e expressou sua concordância total com a condenação de Pelágio e Coelestius: “Declaramos, em virtude da nossa autoridade Apostólica, que Pelágio e Coelestius estão excluídos da comunhão da Igreja até que se libertem das armadilhas de Satanás”.

No ano seguinte (417), o papa Inocêncio morreu e foi sucedido pelo papa Zózimo. Pelágio enviou uma confissão de fé bem-composta a Roma, argumentando que havia sido falsamente acusado e deturpado pelos seus adversários. Enquanto isso, Coelestius havia ido a Roma e submetido ao papa uma síntese de submissão. O biógrafo de Agostinho, Peter Brown, escreve: “Pelágio apressou-se em obedecer às convocações do bispo de Roma; ele havia sido precedido por um testemunho entusiasmado do bispo de Jerusalém. Seus acusadores, os bispos Heros e Lázaro, eram inimigos pessoais de Zózimo ...Numa sessão formal, Zózimo recusou pressionar a Coelestius e, assim pôde declarar-se satisfeito. Pelágio obteve uma saudação ainda mais calorosa em meados de setembro. Zózimo disse aos africanos..., ‘Quão profundamente cada um de nós foi movido! Dificilmente alguém presente poderia reter as lágrimas ao pensamento dessas pessoas de fé genuína terem sido difamadas’”.

O julgamento de Zózimo não encerrou o assunto. A igreja norte-africana convocou um concílio geral em Cartago em 418 ao qual compareceram mais de duzentos bispos. O concílio lançou vários cânones conta o pelagianismo, incluindo os seguintes:

“- Todo aquele que diz que Adão foi criado mortal e teria, mesmo sem pecado, morrido por necessidade natural, seja anátema.

- Todo aquele que rejeita o batismo infantil ou nega o pecado original nas crianças de maneira que a fórmula batismal, ‘para a remissão de pecados’, seja considerada não num sentido estrito mas num sentido vago, seja anátema.

- Todo aquele que diz que no reino do céu, ou em outra parte, há um lugar intermediário onde as crianças mortas sem o batismo vivem felizes, enquanto sem o batismo elas não podem entrar no reino do céu, isto é, na vida eterna, seja anátema
”.


Os cânones prosseguiram condenando as seguintes doutrinas: “que... o pecado original [não é] herdado de Adão; que a graça não ajuda com relação aos pecados futuros; que a graça consiste apenas em doutrinas e mandamentos; que a graça apenas faz com que seja mais fácil fazer o bem; [e] que os santos expressam a quinta súplica da oração do Senhor não por si mesmos, ou apenas por humildade”.

Zózimo, então, retratou-se quanto à sua posição anterior e publicou uma epístola requerendo que todos os bispos subscrevessem aos cânones desse conselho. Dezoito bispos, incluindo Juliano de Eclanum, recusaram-se. Historiadores uniformemente consideram Juliano como o mais capaz e astuto defensor da teologia pelagiana. Ele forçou sua causa com cartas ao papa e com uma crítica mordaz às visões de Agostinho. Quando Bonifácio sucedeu a Zózimo, ele persuadiu Agostino a refutar Juliano, e esse trabalho o ocupou até sua morte. Dezessete dos dezoito bispos que resistiram à epístola papal, retrataram-se subseqüentemente. Apenas Juliano persistiu. Depois de ser despojado de seu cargo, refugiou-se , juntamente com Coelestius, em Constantinopla, onde em 429 recebeu as boas-vindas do patriarca Nestor. Pouco se sabe da vida subseqüente de Pelágio ou Coelestius. A aliança de Juliano com Nestor não o ajudou porque o próprio Nestor foi mais tarde condenado por causa da heresia que leva o seu nome.

O terceiro conselho ecumênico em Éfeso (431 d.C.), realizado um ano após a morte de Agostinho, condenou o pelagianismo. Schaff faz a seguinte observação sobre o sistema de pensamento pelagiano:

Se a natureza humana não é corrupta, e a vontade natural é competente para todo o bem, não precisamos de um Redentor para criar em nós uma nova vontade e uma nova vida, mas apenas de alguém que nos melhore e enobreça; e a salvação é, essencialmente, obra do homem. O sistema pelagiano realmente não tem lugar para as idéias de redenção, expiação, regeneração e nova criação. Ele as substitui pelos nossos próprios esforços de aperfeiçoar nossos poderes naturais e a mera adição da graça de Deus como suporte e ajuda valiosa. Foi somente por uma feliz inconsistência que Pelágio e seus adeptos tradicionalmente permaneceram nas doutrinas da igreja da Trindade e da pessoa de Cristo. Logicamente, seu sistema conduzia a uma Cristologia racionalista”.

O próximo artigo desta série é SOMOS INCAPAZES DE OBEDECER: AGOSTINHO

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terça-feira, agosto 08, 2006

A Morte da Razão - Introdução e a Natureza da Graça

A MORTE DA RAZÃO – CAPÍTULO 01


Introdução

Se alguém vai passar uma longa temporada no exterior, é de se esperar que aprenda a língua do país a que se destina. Mais do que isso, entretanto, faz-se necessário ele poder realmente comunicar-se com aqueles no meio dos quais viverá. Impõe-se-lhe aprender ainda outra língua – a das formas de pensamento das pessoas com quem falará. É somente assim que conseguirá real comunicação com elas e a elas. O mesmo se dá com a Igreja Cristã. Sua responsabilidade não é apenas professar os princípios básicos da fé cristã, à luz das Escrituras; cumpre-lhe comunicar estas verdades imutáveis à geração em que se situa.

Cada geração cristã defronta com este problema de aprender como falar ao seu tempo de maneira comunicativa. É problema que se não pode resolver sem uma compreensão da situação existencial, em constante mudança, com que se defronta. Para que consigamos comunicar a fé cristã de modo eficiente, portanto, temos que conhecer e entender as formas de pensamento da nossa geração. Diferirão elas ligeiramente de lugar para lugar, e em maior grau de nação para nação. Contudo, características há de uma época tal em que vivemos que são as mesmas onde quer que nos achemos. A características tais é que darei especial consideração. E o propósito que tenho está longe de ser mera satisfação à curiosidade intelectual. À medida que avançarmos, evidenciar-se-á mais a mais o alcance das conseqüências práticas da compreensão adequada destes movimentos de pensamento hodierno.

Surpreender-se-ão alguns que, analisando as tendências do pensamento moderno, eu comece com Tomás de Aquino e prossiga, tendo-o como ponte de partida. Estou, porém, persuadido de que o nosso estudo deve interessar-se, não só isoladamente como também conjuntamente, pela história e pela filosofia. Só nos será possível compreender as tendências atuais do mundo do pensamento, se visualizarmos a situação segundo sua origem histórica, e, ao mesmo tempo, atentarmos minuciosamente, para o desenvolvimento das formas de pensamento filosófico. Somente após havermos efetuado este ponto preliminar teremos condições para enfrentar os aspectos práticos da questão de como comunicar a verdade imutável a um mundo em mudança.


Natureza e Graça

A origem do homem moderno se pode atribuir a diversos períodos. Todavia, partirei do ensino de alguém que transformou o mundo de modo muito real. Tomás de Aquino (1225-1274) abriu caminho para a discussão do que convencionalmente é designado de “natureza e graça”. Elas podem ser representadas em termos do seguinte diagrama:


XXXXXXXXXXGRAÇA
XXXXXXXXXX______________

XXXXXXXXXXNATUREZA


Este diagrama pode ser ampliado nos seguintes moldes, mostrando o que se inclui em ambos os níveis:

GRAÇA, O NÍVEL SUPERIOR:
XXXXXXXXXXDeus o criador;
XXXXXXXXXXO céu e as coisas celestes;
XXXXXXXXXXO invisível e sua Influência na terra;
XXXXXXXXXXA alma humana;
XXXXXXXXXXA unidade
________________________________________________________________

NATUREZA, O NÍVEL INFERIOR:
XXXXXXXXXXA criação;
XXXXXXXXXXA Terra e as coisas terrenas;
XXXXXXXXXXO visível e o que fazem a natureza e o homem na Terra;
XXXXXXXXXXO corpo humano;
XXXXXXXXXXA diversidade.


Até essa época, as formas de pensamento haviam sido bizantinas. As realidades celestiais capitalizavam toda importância e se revestiam de tal santidade que não eram retratadas de maneira realista. É o que se observa com relação a Maria e a Jesus Cristo: - não são nunca retratados de forma realista nesta fase. Retratam-se apenas símbolos. Assim, se examinarmos qualquer dos mosaicos do fim do período bizantino no batistério de Florença, por exemplo, não é um retrato de Maria que veremos, mas um símbolo que representa Maria.

Por outro lado, a natureza em si – as árvores e as montanhas – não se revestia de interesse para o artista, exceto como sendo parte desse mundo em que vivemos. O alpinismo, por exemplo, simplesmente não exercia apelo algum como escalada a ser intentada pelo prazer de subir montanhas. Como veremos, esse esporte como tal só veio a surgir realmente quando ao fim se despertou um novo interesse pela natureza. Destarte, antes de Tomás de Aquino, dava-se esmagadora ênfase às coisas celestes, tão remotas e transcendentes, tão santas se sublimes, representadas através de símbolos, com pouco interesse pela natureza como tal. Com o advento de Tomás de Aquino temos o verdadeiro surto da Renascença humanística.

A concepção tomista da natureza e graça não envolvia completa descontinuidade dos dois princípios porquanto sustentava Tomás de Aquino um conceito de unidade que as correlacionava. Desde os tempos de Aquino, por muitos anos a seguir, houve empenho constante de estabelecer-se uma unidade da graça e natureza, bem como a esperança de que a racionalidade houvesse de dizer algo a respeito de uma e outra.

Uma boa porção de coisas excelentes adveio do surto do pensamento renascentista. De modo particular, a natureza passou a usufruir de conceito mais apropriado.

Do ponto de vista bíblico a natureza é importante porquanto criada por Deus e, por isso, não deve ser menosprezada. Nem devem às coisas relativas ao corpo ser desprezadas quando comparadas com as da alma. Tudo que reflete a beleza se reveste de importância. A sexualidade em si mesma não é um mal. Tudo isto se integra no fato de que Deus nos outorgou na própria natureza uma dádiva excelente, pelo que, se o homem a desdenha, está, na realidade, atentando contra a dignidade daquilo que é criação divina. Destarte, em certo sentido, está desprezando ao próprio Deus, pois que despreza o que Deus criou.


Tomás de Aquino e o Autônomo

Ao mesmo tempo, estamos agora em condições de ver o significado do diagrama da natureza e graça numa perspectiva diferente. Embora bons resultados adviessem da posição de maior realce conferida à natureza, isso deu lugar a muita coisa de cunho destrutivo, como se verá. Na concepção tomista a vontade humana estava decaída, mas não o intelecto. Dessa noção incompleta do conceito bíblico de Queda, defluiram todas as dificuldades subseqüentes. O intelecto humano se tornou autônomo. Em um aspecto era o homem agora independente, autônomo.

Esta esfera do autônomo em Tomás de Aquino assume várias formas: Um dos resultados, por exemplo, foi o desenvolvimento da teologia natural. Nesta perspectiva a teologia natural é uma teologia que se poderia formular independentemente das Escrituras. Embora fosse um estudo autônomo, ele esperava que resultasse numa unidade e dizia existir uma correlação inegável entre a teologia natural e a Bíblia. O ponto importante, porém, no que se seguiu foi que uma área completamente autônoma assim se estabelecia.

Com base neste princípio de autonomia, também a filosofia se tornou livre e se separou da revelação. Portanto, a filosofia começou a criar asas, por assim dizer, voando por onde quer que lhe aprazia, deixando à margem as Escrituras. Não quer isto dizer que essa tendência não se manifestara em tempos anteriores, apenas que de agora em diante se patenteia de maneira mais completa.

Nem se limitou à teologia filosófica de Tomás de Aquino. Bem logo se fez sentir no mundo da arte.

O processo educacional hodierno tem um ponto falho por não levar em conta as associações naturais entre as diferentes disciplinas. Tendemos a estudá-las todas à parte, em linhas paralelas. Esta tendência é real tanto na educação secular como na educação cristã. Esta é uma das razões por que evangélicos se têm surpreendido ante a tremenda mudança produzida em nossa geração. Temos estudado exegese apenas como exegese, teologia apenas como teologia, filosofia apenas como filosofia; estudamos algo na esfera da arte, apenas como arte; estudamos música simplesmente como sendo música, despercebidos de que são elaborações humanas e as coisas do homem não se podem conceber como linhas paralelas não relacionadas.

Há diversas maneiras em que esta associação de teologia, filosofia e arte emergiu em seqüela a Tomás de Aquino.


Pintores e Escritores

O primeiro artista a ser assim influenciado foi Cimabue (1240-1302), mestre de Giotto (1267-1337). Visto que Tomás de Aquino viveu de 1225 a 1274, estas influências se fizeram sentir bem depressa no campo da arte. Ao invés de situarem todos os motivos da arte acima da linha divisória entre a natureza e a graça na maneira simbólica do Bizantino, Cimabue e Giotto começara a pintar as coisas da natureza como natureza. Neste período de transição a mudança não ocorreu toda de uma vez. Havia, por isso, a tendência, a princípio, de se pintarem os elementos de menos importância no quadro de forma naturalista, continuando, porém a se representar Maria, por exemplo, como um símbolo.

Depois Dante (1265-1321) passou a escrever de maneira como estes artistas pintavam. De repente, tudo começa a alterar-se no sentido de que a natureza veio a tornar-se importante. Idêntica expressão pode-se perceber nos renomados escritores Petrarca (1304-1374) e Bocácio (1313-1375). Petrarca foi o primeiro de quem se ouviu dizer jamais haver escalado montanhas sem ser pelo simples prazer de fazê-lo. Tal interesse pela natureza como Deus a criou é, como já vimos, bom e apropriado. Tomás de Aquino, porém, havia aberto caminho a um Humanismo Autônomo, uma filosofia autônoma e, tão logo o movimento adquiriu força, e a tendência se tornou um verdadeiro dilúvio.


Natureza Versus Graça

O princípio vital a notar-se é que, à medida que a natureza se fazia autônoma, passava a “devorar” a graça. Através da Renascença, de Dante a Miguel Ângelo, gradualmente a natureza se fez mais inteiramente autônoma. Ela libertou-se de Deus à medida que os filósofos humanistas começaram a operar cada vez mais à vontade. Quando a Renascença chegou ao seu clímax, a natureza havia devorado a graça.

De várias maneiras pode-se demonstrar isto. Comecemos com uma miniatura conhecida como Grandes Heures de Rohan (Grandes Horas de Rohan), pintada por volta de 1415. O motivo que explora é uma estória miraculosa do período. Maria, José e o menino, em fuga para o Egito, passam por um campo em que um homem está semeando, e um milagre se realiza. Germina o grão semeado, e cresce no espaço de mais ou menos uma hora, e se mostra em condições de ser ceifado. Quando o homem se põe a cortar o trigo, aparecem os soldados que vinham em perseguição à família fugitiva e indagam: “Quanto tempo faz que passaram por aqui?” Responde o lavrador que na ocasião ele estava semeando aquele cereal e, diante disso, os soldados retrocedem. Não é, porém, propriamente a estória que nos interessa, mas a maneira como se dispõe as figuras na miniatura. Em primeiro lugar, há uma notória diferença no tamanho das figuras de Maria e José, do menino, do criado e do jumento, que ocupam a parte superior da tela e o dominam pelas dimensões avultadas, e as minúsculas representações do soldado e do homem que empunha a foice na porção inferior do quadro. Em segundo lugar, a mensagem se evidencia não só mercê do porte das figuras superiores, mas ainda pelo fato de que o fundo dessa porção é coberto de linhas douradas. Há, pois, total expressão pictórica da graça e da natureza.

Este é o antigo conceito, a graça avultadamente importante, a natureza merecendo pouco destaque.

No Norte Europeu, Van Eyck (1380-1441) foi quem abriu a porta à natureza numa nova maneira. Começou a pintar a natureza real, tal qual se mostra. Em 1410, data muito importante na história da arte, pintou uma miniatura de reduzidas proporções. Mede apenas doze por oito centímetros. É, contudo, um quadro de tremendo significado porque representa a primeira paisagem real. Deu origem a todos os fundos de quadro que surgiram posteriormente no decurso da Renascença. O tema é o batismo de Jesus, mas a cena abrange apenas diminutas áreas no quadro como um todo. O fundo apresenta um rio, um castelo muito real, casas, colinas e outros elementos – paisagem natural: a natureza se tornou importante. Depois desta, paisagens do gênero se difundiram rapidamente do norte ao sul da Europa.

Surge logo o estágio seguinte. Em 1435, Van Eyck pintou a Madona do Chanceler Rolin – hoje no Museu do Louvre, em Paris. A característica significante é que o Chanceler Rolin, ao defrontar-se com Maria, tem as mesmas dimensões que ela. Maria não mais se retrata remota, o Chanceler não mais um figura minúscula, como teria sido o caso em relação aos patrocinadores do período anterior. Embora tenha as mãos em postura de prece, aparece em pé de igualdade com Maria. De agora em diante a pressão se faz sentir: como resolver este equilíbrio entre a graça e a natureza?

Neste ponto cabe uma menção a Masaccio (1401-1428), outro vulto importante. Ele dá o próximo grande passo na Itália após Giotto, que faleceu em 1337, por introduzir perspectiva e espaço reais. Pela primeira vez, a luz é projetada da direção própria. Por exemplo, na maravilhosa Capela Carmina em Florença, há uma janela que ele levou em consideração ao pintar os quadros nas paredes, de sorte que as sombras nas pinturas caem na posição que a luz advinda dessa janela determina. Estava Masaccio fitando a natureza real, verdadeira. Pintava de tal modo que seus quadros pareciam refletir a exata perspectiva da realidade em três dimensões; dão a sensação de atmosfera; e ele introduziu a composição real. Viveu apenas até os vinte e sete anos; entretanto, abriu quase de completo a porta à natureza. Com a obra de Masaccio, assim como com a maior parte dos trabalhos de Van Eyck, a ênfase à natureza foi tal que poderia ter levado à pintura um verdadeiro ponto de vista bíblico.

Com Filippo Lippi (1406-1469), salta à vista que a natureza começa a “devorar” a graça de modo mais sério do que se viu na Madona do Chanceler Rolin, de Van Eyck. Bem poucos anos antes, artista nenhum ousaria pensar em pintar Maria em moldes naturais – pintar-lhe-ia apenas um símbolo. Quando, porém, Filippo Lippi executou o quadro da Madona em 1465 a mudança que se patenteava era surpreendente. Retratava uma jovem extremamente formosa com uma criança nos braços em uma paisagem que sem dúvida fora grandemente influenciada pela obra de Van Eyck. Esta Madona já não mais era um símbolo remoto, distante, de cunho transcendente, era uma linda jovem com uma criança. Mas, há algo ainda que devemos saber acerca deste quadro. A jovem que representava Maria, era nada menos que sua amante, fato conhecido de toda Florença. Ninguém teria ousado fazer isso alguns anos antes. A natureza estava matando a graça.

Na França, Fouquet (cerca de 1416-1480) pintou por volta de 1450, a amante do rei, Agnes Sorel, como Maria. Todos quantos conheciam a Corte de perto, vendo o quadro, sabiam tratar-se da então amante do rei. Ademais, Fouquet pintou-a com um dos seios à mostra. Enquanto nos tempos precedentes a representação seria de Maria amamentando o menino Jesus, agora era a amante do rei, com um seio à vista - e a graça estava morta!

O ponto a acentuar-se é que a natureza, uma vez tratada como coisa autônoma, reveste-se de caráter destrutivo. Tão logo se estabelece esse reino autônomo verifica-se que o elemento inferior começa a corroer o superior. Daqui por diante referir-me-ei a estes dois elementos como o “andar inferior” e o “andar superior”.


Leonardo da Vinci e Rafael

Leonardo da Vinci é a figura que em seguida se impõe à consideração. Ele introduz um novo fator no fluxo da história e mais do que qualquer vulto que o precedeu é a individualidade que mais se aproxima do homem moderno. Viveu de 1452 a 1519, faixa que se reveste de não reduzida importância porquanto coincide com os primórdios da Reforma Protestante. Integra também, e com acentuada relevância, a assinalada mudança que se manifestou no pensamento filosófico. Cósimo de Médicis, o velho, de Florença, que faleceu em 1464, foi o primeiro a perceber a importância da filosofia de Platão. Tomás de Aquino havia introduzido o pensamento aristotélico. Cósimo começou a bater-se pelo Neo-Platonismo. Ficino (1433-1499), o grande neo-platonista, foi mestre de Lourenço, o Magnífico (1449-1492). Nos dias de Leonardo da Vinci era o Neo-Platonismo força dominante em Florença. Assumiu essa relevância simplesmente porque se fazia mister encontrar algo a colocar-se no “andar superior”. O Neo-Platonismo era guindado a essa privilegiada posição com vistas a restaurar idéias e ideais – isto é, coisas universais:

XXXXXXXXXXGRAÇA – UNIVERSAIS
XXXXXXXXXX___________________________

XXXXXXXXXXNATUREZA – PARTICULARES


Um quadro que ilustra este ponto é A Escola de Atenas, de Rafael (1483-1520). Na sala do Vaticano em que se encontra esta obra famosa, Rafael pintou em uma das paredes um mural que representa a Igreja Católica Romana que contrabalança, na parede oposta, A Escola de Atenas que tipifica o pensamento pagão clássico. Em A Escola de Atenas Rafael retrata a diferença entre o elemento aristotélico e o platônico. Os dois filósofos ocupam o centro do quadro. Aristóteles com as mãos voltadas para o chão. Platão a apontar para o alto.

Este problema pode-se expressar de outra forma. Onde encontrar a unidade, depois de conceder plena liberdade à diversidade? Se são libertadas, de que modo conservá-las num todo uno? Leonardo se debateu com este problema. Ele era um pintor neoplatônico e, muitos o têm dito – julgo que com muita propriedade -, o primeiro matemático moderno. Percebeu ele que, se partirmos da racionalidade autônoma, chegaremos à matemática (matéria que se pode medir); e a matemática trata somente de particulares, nunca de universais. Portanto, não iremos nunca além da mecânica. A uma pessoa que se apercebia de quão necessária era a unidade, era patente a insuficiência deste esquema. Procurou, pois, pintar a alma. Não a alma cristã; a alma era-lhe a universalidade, a alma, por exemplo, do amor ou da árvore.


XXXXXXXXXXALMA – UNIDADE
XXXXXXXXXX____________________________________

XXXXXXXXXXMATEMÁTICA – PARTICULARES – MECÂNICA


Uma das razões por que jamais pintou de modo intenso foi simplesmente porque procurou desenhar, sempre desenhar, com vistas a ser capaz de retratar o universal. Não é necessário dizer que jamais o conseguiu.

Giovanni Gentile, um dos maiores expoentes do pensamento filosófico italiano, falecido em tempos relativamente recentes, disse que Leonardo morreu em desalento porquanto não queria abrir mão da esperança de uma unidade racional entre os particulares e o universal. Para haver escapado a esse desalento, necessário teria sido que Leonardo fosse criatura diferente. Ter-lhe-ia sido imperativo desvencilhar-se desse anelo por uma unidade acima e abaixo da linha. Leonardo, que não era pensador da linhagem moderna, jamais abandonou a esperança de um campo de conhecimento unificado. Em outras palavras, não abriria mão da esperança do homem erudito que, no passado, se caracterizou por esta insistência em um todo unificado de conhecimento.


O próximo artigo desta série é UMA UNIDADE DE NATUREZA E GRAÇA

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