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sábado, agosto 12, 2006

Somos Capazes de Obedecer: Pelágio

SOLA GRATIA – A CONTROVÉRSIA SOBRE O LIVRE-ARBÍTRIO NA HISTÓRIA



Somos Capazes de Obedecer: Pelágio

O nome pelagianismo tem sua origem a partir de um monge britânico que se engajou num debate ardente com Agostinho na igreja primitiva. Presumivelmente nascido na Irlanda, Pelágio tornou-se monge e eunuco. Movido em sua alma, ele chamava a igreja para uma perseguição vigorosa da virtude e até mesmo da perfeição moral. Passou muitos anos em Roma onde Coelestius e Juliano de Eclanum, o bispo que se tornara viúvo ainda jovem, se juntaram a ele no seu conflito com Agostinho. Dos três, Juliano era o mais culto. Também era o mais agressivo na controvérsia, embora tenha sido menos agitador do que Coelestius.

Adolph Harnack diz que Pelágio foi “levado à ira por uma cristandade inerte, que se desculpava alegando fragilidade da carne e a impossibilidade do cumprimento dos mandamentos opressivos de Deus”. De acordo com Harnack, Pelágio “pregava que Deus não havia ordenado nada impossível, que o homem possuía o poder de fazer o bem se assim o desejasse e que a fraqueza da carne era meramente um pretexto.”.

O princípio controlador do pensamento de Pelágio era a convicção (observada por Harnack) de que Deus nunca ordena o que é impossível para o homem realizar. Para Pelágio, esse não era um princípio teológico abstrato mas um assunto que acarretava conseqüências práticas urgentes para a vida cristã. Ele se levantou inicialmente contra Agostinho por causa de uma oração que Agostinho havia escrito: “Concede o que tu ordenaste, e ordena o que tu desejas”.

Pelágio não discordava da última frase dessa oração. Na verdade, é virtualmente supérflua. Deus tem o direito de ordenar tudo o que deseja. Esta, claramente, é uma prerrogativa divina. A suposição, naturalmente, é de que o que Deus deseja de suas criaturas nunca será frívolo ou mal. Essa parte da oração de Agostinho não indica que Deus precisa de permissão humana para legislar seus mandamentos, mas refletia, em seu lugar, a postura de humilde submissão de Agostinho quanto ao direito divino de lei.

Pelágio exasperou-se com a primeira parte da oração de Agostinho: “Concede o que tu ordenaste...”. O que Agostinho estava pedindo que Deus concedesse? Não poderia ser sua permissão, porque a criatura nunca precisa pedir permissão para fazer o que havia sido ordenado. Na verdade, ele precisaria de permissão para não fazê-lo. Agostinho, obviamente, estava pedindo outra coisa, algum tipo de dom para atender ao comando. Pelágio acertadamente supôs que Agostinho estava orando pelo dom da graça divina que viria na forma de algum tipo de assistência.

Pelágio levantou a seguinte questão: A assistência da graça é necessária para o ser humano obedecer aos comandos de Deus? Ou esses comandos podem ser obedecidos sem essa assistência? Para Pelágio, a ordem de obedecer implicava habilidade para obedecer. Isso se aplicaria não apenas à lei moral de Deus mas também aos comandos inerentes ao Evangelho. Se Deus ordena que as pessoas creiam em Cristo, então elas devem ter o poder de crer em Cristo sem a ajuda da graça. Se Deus ordena que os pecadores se arrependam, eles devem ter a habilidade de se inclinarem para obedeceram ao comando. A obediência não precisa, de forma alguma, ser “concedida”.

A questão entre Pelágio e Agostinho era clara. Não estava ofuscada por argumentos teológicos intrincados, especialmente no começo. “Nunca houve, talvez, uma outra crise de igual importância na história da igreja na qual os oponentes tenham expressado os princípios em debate tão clara e abstratamente”, diz Harnack. “Somente a disputa Ariana antes do Concílio de Nicéia pode ser comparada a ela...”.

Para Pelágio, a natureza não requer graça a fim de cumprir suas obrigações. O livre-arbítrio, adequadamente exercido, produz virtude, que é o bem supremo e devidamente seguido pela recompensa. Por meio do seu próprio esforço, o homem por alcançar tudo o que se requer dele na moralidade e na religião.


Dezoito Premissas

Ao resumir os principais dogmas do pensamento de Pelágio, seguirei o esboço fornecido por Harnack no seu History of Dogma. A base do pensamento de Pelágio é a premissa de que os mais altos atributos de Deus são a sua bondade e justiça. Para Pelágio, esses atributos são a condição sine qua non do caráter divino. Sem os mesmos, Deus não seria Deus. É inconcebível um Deus que carece da perfeição da bondade e da justiça.

A segunda premissa sobre a qual Pelágio elabora é: se Deus é completamente bom, então tudo o que criou é igualmente bom. Toa a sua criação é boa, incluindo o homem. “Adão... foi criado por Deus sem pecado e inteiramente competente para todo o bem, com um espírito imortal e um corpo mortal”, observa Philip Schaff, resumindo a visão de Pelágio. “Ele [Adão] foi dotado com razão e livre-arbítrio. Com sua razão, ele deveria ter o domínio sobre todas as criaturas irracionais; com o seu livre-arbítrio, ele deveria servir a Deus. A liberdade é o bem supremo, a honra e a glória do homem, o bonum naturae, que não pode ser perdido. É a base única da relação ética do homem com Deus, que não teria um culto relutante. Ela consiste... essencialmente no liberum arbitrum, ou na possibilitas boni et mali; liberdade de escolha e na habilidade absolutamente semelhante para o bem ou mal a cada momento”.

Pelágio arraigou sua visão da natureza humana e do livre-arbítrio na sua doutrina da criação. O livre-arbítrio consiste essencialmente na habilidade de se escolher entre o bem e o mal. Essa habilidade ou possibilidade é a própria essência do livre-arbítrio, de acordo com Pelágio. Essa habilidade é dada ao homem por Deus na criação, e é um aspecto essencial da natureza constituinte do homem.

A terceira premissa de Pelágio é que a natureza foi criada não apenas boa mas incontestavelmente boa. Isso é verdade “porque as coisas da natureza persistem desde o início da existência (substância) até o seu fim”. Schaff diz de Pelágio:

“Ele vê a liberdade na sua forma apenas, e em seu primeiro estágio, e lá ele fixa e a deixa, no equilíbrio perpétuo ente o bem e o mal, pronta para se decidir por qualquer um a qualquer momento. Ela não tem passado ou futuro; absolutamente independente de tudo, seja interior ou exterior; um vácuo que pode se fazer pleno e, então, tornar-se um vácuo novamente; uma tábula rasa, sobre a qual o homem pode escrever tudo o que lhe agrada; uma escolha impaciente, a qual, depois de cada decisão, reverte-se à indecisão e oscilação. A vontade humana é como se fosse o eterno Hércules na encruzilhada, que dá o primeiro passo para a direita e o segundo para a esquerda e sempre volta à primeira posição”. Philip Schaff – History of the Christian Church.


Se a vontade do homem é uma tábula rasa perpétua, então quando uma pessoa peca, a natureza da vontade não passa por uma mudança e nem por uma deformação. Não há uma corrupção inerente no homem. Não há predisposição ou inclinação para o pecado que é, em si mesma, um resultado do pecado. Cada ato de pecado flui de um novo começo, um bloco limpo de papel que não é inscrito a priori com alguma predileção.

A quarta premissa de Pelágio é que a natureza humana, como tal, é inalteravelmente boa. Istoé, a essência constituinte do homem permanece boa. A natureza não pode ser alterada na sua substância; só pode ser modificada acidentalmente. O termo acidentalmente aqui não significa que algo acontece sem intenção como um resultado do infortúnio. Ele refere-se à distinção de Aristóteles entre a substância de um objeto e seus accidens. Accidens refere-se ao que é exterior a alguma coisa, as qualidades perceptíveis, qualidades que estão na periferia e não são essenciais ao ser desse algo. O comportamento de alguém pode ser mudado quando ele comete atos pecaminosos, mas essas ações não mudam a natureza desse alguém.

A quinta premissa de Pelágio, que se segue a partir das quatro primeiras, é que o mal ou pecado nunca pode transformar-se em natureza. Ele define o pecado côo um desejo de fazer o que a justiça proíbe, do qual somos livres para nos abstermos e, assim, podemos sempre evitá-lo pelo exercício adequado da nossa vontade. O pecado é sempre um ato e nunca uma natureza. Caso contrário, Pelágio insiste, Deus seria o autor do mal. Os atos pecaminosos nunca podem causar uma natureza pecaminosa, e o mal também não pode ser herdado. Se pudesse, então a bondade e a justiça de Deus estariam destruídas.

Na sua sexta premissa, Pelágio explica que o pecado existe como o resultado das armadilhas de Satanás e da concupiscência sensual. Essas tentações ao pecado podem ser superadas pelo exercício da virtude. Nem a lascívia ou a concupiscência surgem da essência do homem mas é “extrínseca” a ela. Essa concupiscência não é, em si mesma, má, porque até mesmo Cristo estava sujeito a ela. Isso dá origem à formulação histórica com reação à concupiscência: ela é do pecado e inclina ao pecado mas não é, em si mesma,pecado.

A sétima premissa conclui que sempre permanece a possibilidade e, na verdade, a realidade dos homens sem pecado. O homem pode ser perfeito e alguns têm sido. Essa tese rejeita categoricamente qualquer doutrina do pecado original, isto é, que os homens têm a natureza corrupta como resultado da queda de Adão. Isso conduz às teses nas quais Pelágio descreve a condição de Adão e de sua progenitura.

A oitava premissa é que Adão foi criado com livre-arbítrio e uma santidade natural indubitável. Essa santidade natural compreendia a liberdade da sua vontade e da sua razão. Uma vez que essas faculdades eram dons dados por Deus na criação, podiam ser consideradas dons da graça. Não foram adquiridas por Adão, mas eram dons inerentes na sua criação.

A nona premissa é que Adão pecou por vontade própria. Ele não foi coagido por Deus ou por qualquer outra criatura a cometer o primeiro ato de pecado. Esse pecado não resultou na corrupção da sua natureza. Nem causou a morte natural porque Adão foi criado mortal. O pecado de Adão resultou, sim, em “morte espiritual”, que não era a perda da habilidade moral ou uma corrupção inerente, mas a condenação da alma por causa do pecado.

A décima premissa é que a progenitura de Adão não herdou a morte natural e nem a morte espiritual. Sua descendência morreu porque também era mortal. Se seus descendentes experimentaram a morte espiritual, isso se deu porque, de forma semelhante, também pecaram. Eles não experimentaram a morte espiritual por causa de Adão.

A décima primeira premissa afirma que nem o pecado de Adão nem sua culpa foram transmitidos à sua descendência. Pelágio considerava a doutrina do pecado transmitido (tradux peccati) e a do pecado original (peccatum originis) como uma doutrina blasfema arraigada no maniqueísmo. Pelágio insistia que seria injustiça de Deus transmitir ou imputar o pecado de um homem a outros. Deus não introduziria novas criaturas a um mundo onerado com o peso de um pecado que não era delas. O pecado original envolveria uma mudança na natureza constituinte do homem de boa para má. O homem se tornaria naturalmente mau. Se o homem fosse mau por natureza, tanto antes quanto depois do pecado de Adão, então Deus seria novamente considerado o autor do mal. Se a natureza do homem se tornou pecaminosa ou má, então estaria também acima da redenção. Se o pecado original fosse natural, então Cristo teria de possuí-lo e seria incapaz de se redimir, muito menos a qualquer outra pessoa.

Schaff faz a seguinte observação sobre essa dimensão da antropologia de Pelágio: “Pelágio , destituído da idéia do todo orgânico da raça ou da natureza humana, via Adão meramente como um indivíduo isolado; ele não deu a Adão nenhum lugar representativos, logo seus atos não acarretavam conseqüências além de si mesmo. Em sua visão, o pecado do primeiro homem consistiu de um único e isolado ato de desobediência ao comando divino. Juliano o compara à ofensa insignificante de uma criança que se permite ser desencaminhada por alguma tentação sensual mas que depois se arrepende de sua falha... Esse ato de transgressão único e desculpável não gerou conseqüências à alma e nem ao corpo de Adão, muito menos à sua posteridade, onde todos se mantêm ou caem por si mesmos”.

Para Pelágio, não há conexão entre o pecado de Adão e o nosso. A idéia de que o pecado poderia ser propagado via geração humana é absurda. “Se seus próprios pecados não prejudicam os pais depois da sua conversão”, diz Pelágio, “muito menos os pais podem prejudicar sues filhos”.

Sua décima segunda premissa concluiu que todos os homens são criados por Deus na mesma posição que Adão gozava antes da queda. Há duas diferenças entre Adão e sua descendência, mas essas diferenças não são essenciais. A primeira é que Adão foi criado como um adulto; sua descendência, como infantes. Adão teve o uso total da razão desde o início, ao passo que sua descendência teve de desenvolver sua habilidade quanto à razão. A segunda diferença é que Adão foi colocado num jardim paradisíaco onde não prevalecia o costume do mal; sua descendência nasce em uma sociedade ou ambiente no qual o costume do mal prevalece. No entanto, as crianças ainda nascem sem pecado.

Por que, então, a universalidade virtual do pecado? Pelágio a atribuiu à imitação e à longa prática do pecado: “Porque nenhuma outra causa faz com que tenhamos dificuldade de fazer o bem do que o longo costume dos vícios que nos infectam desde a infância e gradualmente, através dos anos, nos corrompem e, assim, nos mantém obrigados e devotados a eles, parecendo, de alguma forma, ter a força da natureza”.

Nessa passagem, Pelágio parece chegar perto de admitir o pecado original. A palavra-chave, no entanto, é parecendo. O pecado, na verdade, não tem “a força da natureza”, a despeito da sua presença difundida. Num sentido, Pelágio está oferecendo uma explicação para a razão pela qual outros têm sido atraídos pela idéia do pecado original.

Sua décima terceira premissa é que o hábito de pecar enfraquece a vontade. Esse enfraquecimento, no entanto, deve ser entendido no sentido acidental. O costume de pecar obscurece o nosso pensamento e nos conduz aos maus hábitos. Mas esses hábitos descrevem uma prática, não algo que realmente “habita a vontade”. A vontade não é enfraquecida; ela não passa por uma mudança constituinte. Ela ainda retém a postura da indiferença sempre que uma decisão ética ou moral precisa ser tomada.

A décima quarta premissa de Pelágio revela o início de um conceito de graça: A graça facilita a bondade. A graça de Deus faz com que seja mais fácil para nós sermos justos. Ela nos assiste em nossa busca da perfeição. Ms o ponto crucial de Pelágio é que, embora a graça facilite a justiça, ela não é, de forma alguma, essencial para que alcancemos essa justiça. O homem pode e deveria ser bom sem a ajuda da graça.

“A resolução pelagiana do paradoxo da graça foi baseada numa definição de graça fundamentalmente diferente da definição agostiniana, e foi aí que o debate apertou”, observa Jaroslav Pelikan. “Espalhou-se que Pelágio estava ‘contestando a graça de Deus’. Seu tratado sobre a graça dava a impressão de concentrar-se 'apenas no tópico da faculdade e capacidade da natureza, enquanto fez com que a graça de Deus consistisse quase que inteiramente disso’. Nesse livro, parecia que ‘com cada argumento possível, ele defendia a natureza do homem contra a graça de Deus, pela qual o ímpio é justificado e pela qual nós somos cristãos’”.

A décima quinta premissa declara que a graça fundamental que Deus dá é aquela dada na criação. Essa graça é tão gloriosa que alguns gentios e judeus têm alcançado a perfeição.

A décima sexta premissa denota a graça dada por Deus, em sua lei, a graça de instrução e iluminação. Essa graça nada faz interiormente, mas produz uma definição clara de natureza da bondade. Nas categorias clássicas da virtude, duas coisas distintas foram requeridas: o conhecimento do bem e o poder moral para fazer o bem. Ambos são facilitados pela instrução e iluminação da lei.

A graça é dada não apenas pela lei, mas também , de acordo com a décima sétima premissa, por meio de Cristo. Essa graça é também definida como illuminatio et doctrina. A principal obra de Cristo foi nos fornecer um exemplo.

Pelágio escreve [numa carta]: “Nós, os que fomos instruídos pela graça de Cristo e nascidos de novo para uma humanidade melhor, que formos expiados e purificados pelo seu sangue e incitados à justiça perfeita pelo seu exemplo, devemos ser melhores do que aqueles que existiram antes da lei, e melhores também do que aqueles que estiveram sob a lei”; mas o argumento total dessa carta, em que o tópico é simplesmente o conhecimento da lei como meio para a promoção da virtude, e também a declaração de que Deus abre os nossos olhos e revela o futuro “quando nos ilumina como o dom multiforme e inefável da graça celestial”, prova que para ele... a “assistência de Deus” consiste, no final, apenas em instrução”.

A doutrina da graça de Pelágio é meramente o outro lado da sua doutrina do pecado. Por todo o seu pensamento, permanece a afirmação fundamental da inconversibilidade da natureza humana. Tendo sido criado boa, ela sempre permanece boa.

Sua última ou décima oitava premissa é que a graça de Deus é compatível com sua justiça. A graça não fornece benefício adicional à natureza humana, mas é dada por Deus de acordo com o mérito. Em última análise, a graça é merecida.

Podemos resumir os dezoito pontos do pensamento pelagiano como se segue:

01 – Os mais altos atributos de Deus são sua retidão e justiça.
02 – Tudo o que Deus criou é bom.
03 – Como algo criado, a natureza não pode ser mudada na sua essência.
04 – A natureza humana é inalteravelmente boa.
05 – O mal é um ato que nós podemos evitar.
06 – O pecado vem via armadilhas satânicas e concupiscência sensual.
07 – Pode haver homens sem pecado.
08 – Adão foi criado com livre-arbítrio e santidade natural.
09 – Adão pecou por livre vontade.
10 – A descendência de Adão não herdou dele a morte natural.
11 – Nem o pecado de Adão nem sua culpa foram transmitidos.
12 – Todos os homens são criados como Adão era antes da queda.
13 - O hábito de pecar enfraquece a vontade.
14 – A graça da criação produz homens perfeitos.
16 – A graça da lei de Deus ilumina e instrui.
17 – Cristo trabalha principalmente pelo seu exemplo.
18 – A graça é dada de acordo com a justiça e mérito.


O Curso da Controvérsia

A controvérsia pelagiana surgiu por volta de 411 ou 412 em Cartago. Coelestius, discípulo de Pelágio, tentava ser nomeado presbítero em Cartago. Paulinius o denunciou com a acusação de que ele ensinava que o batismo de infantes não objetivava a purificação do pecado. Harnack lista os itens da denúncia de Paulinius: Pelágio ensinava “que Adão foi feito mortal e teria morrido se tivesse ou não pecado – que o pecado de Adão só trouxe prejuízo a ele mesmo e não à raça humana – infantes, quando nascem, estão no estado em que Adão estava antes do seu erro – que a raça humana não morre por causa da morte de Adão e do seu erro e nem ressuscitará em virtude da ressurreição de Cristo – tanto a lei quanto o Evangelho admitem os homens no reino dos céus – mesmo antes do advento de nosso Senhor, houve homens impecáveis, isto é, homens sem pecado – que o homem pode estar sem pecado e pode facilmente manter os comandos divinos se assim o desejar”.

O Sínodo de Cartago excomungou Coelestius. Ele, então, retirou-se para Éfeso onde conseguiu tornar-se presbítero. Enquanto isso, Pelágio, desejando evitar qualquer grande controvérsia, havia viajado para a Palestina. Antes disso, havia visitado Hipona, mas Agostinho estava fora e assim, não se encontraram. De Jerusalém, Pelágio escreveu uma carta lisonjeira a Agostinho. Este respondeu com uma carta cortês mas cautelosa. Agostinho ainda estava se recuperando da pressão da controvérsia donatista e sabia pouco sobre a controvérsia que estava se formando em Cartago com Coelestius. Agostinho recebeu notícias de Jerusalém de que o ensino de Pelágio estava causando um tumulto por lá.

Osório, um amigo e discípulo de Agostinho, solicitou uma sindicância contra Pelágio em 415, mas Pelágio foi exonerado. Em dezembro desse ano, um sínodo palestino denunciou alguns dos escritos de Pelágio. Quando o sínodo exigiu que ele renunciasse ao seu ensino de que o homem pode estar sem pecado sem a ajuda da graça, Pelágio capitulou. Ele disse, “eu os anatemizo como insensatos, não como heréticos, visto não ser caso de dogma”. Ele repudiou o ensino de Coelestius, dizendo: “Mas as coisas que declarei não serem minhas, eu, de acordo com a opinião da santa igreja, reprovo, pronunciando um anátema a todo aquele que se opuser”.

Como resultado, Pelágio foi pronunciado ortodoxo. Reinhold Seeberg chama a resposta de Pelágio de “mentira covarde”. Isso deixou Pelágio com a difícil tarefa de recuperar a sua credibilidade diante de seus próprios defensores. Ele escreveu quatro livros, incluindo De Natura e De Libero Arbítrio para elucidar suas opiniões.

A igreja da África do Norte não estava satisfeita com os resultados do sínodo. Jerônimo o chamou de “sínodo miserável” e Agostinho disse, “não foi a heresia que foi absolvida lá, mas o homem que a negou”. Dois sínodos norte-africanos aconteceram em 416, e ambos condenaram o pelagianismo. Uma carta dos procedimentos foi enviada ao papa Inocêncio, e esta foi seguida por outra carta de cinco bispos norte-africanos, incluindo Agostinho. Pelágio reagiu com uma carta sua. O papa Inocêncio se agradou em ser consultado e expressou sua concordância total com a condenação de Pelágio e Coelestius: “Declaramos, em virtude da nossa autoridade Apostólica, que Pelágio e Coelestius estão excluídos da comunhão da Igreja até que se libertem das armadilhas de Satanás”.

No ano seguinte (417), o papa Inocêncio morreu e foi sucedido pelo papa Zózimo. Pelágio enviou uma confissão de fé bem-composta a Roma, argumentando que havia sido falsamente acusado e deturpado pelos seus adversários. Enquanto isso, Coelestius havia ido a Roma e submetido ao papa uma síntese de submissão. O biógrafo de Agostinho, Peter Brown, escreve: “Pelágio apressou-se em obedecer às convocações do bispo de Roma; ele havia sido precedido por um testemunho entusiasmado do bispo de Jerusalém. Seus acusadores, os bispos Heros e Lázaro, eram inimigos pessoais de Zózimo ...Numa sessão formal, Zózimo recusou pressionar a Coelestius e, assim pôde declarar-se satisfeito. Pelágio obteve uma saudação ainda mais calorosa em meados de setembro. Zózimo disse aos africanos..., ‘Quão profundamente cada um de nós foi movido! Dificilmente alguém presente poderia reter as lágrimas ao pensamento dessas pessoas de fé genuína terem sido difamadas’”.

O julgamento de Zózimo não encerrou o assunto. A igreja norte-africana convocou um concílio geral em Cartago em 418 ao qual compareceram mais de duzentos bispos. O concílio lançou vários cânones conta o pelagianismo, incluindo os seguintes:

“- Todo aquele que diz que Adão foi criado mortal e teria, mesmo sem pecado, morrido por necessidade natural, seja anátema.

- Todo aquele que rejeita o batismo infantil ou nega o pecado original nas crianças de maneira que a fórmula batismal, ‘para a remissão de pecados’, seja considerada não num sentido estrito mas num sentido vago, seja anátema.

- Todo aquele que diz que no reino do céu, ou em outra parte, há um lugar intermediário onde as crianças mortas sem o batismo vivem felizes, enquanto sem o batismo elas não podem entrar no reino do céu, isto é, na vida eterna, seja anátema
”.


Os cânones prosseguiram condenando as seguintes doutrinas: “que... o pecado original [não é] herdado de Adão; que a graça não ajuda com relação aos pecados futuros; que a graça consiste apenas em doutrinas e mandamentos; que a graça apenas faz com que seja mais fácil fazer o bem; [e] que os santos expressam a quinta súplica da oração do Senhor não por si mesmos, ou apenas por humildade”.

Zózimo, então, retratou-se quanto à sua posição anterior e publicou uma epístola requerendo que todos os bispos subscrevessem aos cânones desse conselho. Dezoito bispos, incluindo Juliano de Eclanum, recusaram-se. Historiadores uniformemente consideram Juliano como o mais capaz e astuto defensor da teologia pelagiana. Ele forçou sua causa com cartas ao papa e com uma crítica mordaz às visões de Agostinho. Quando Bonifácio sucedeu a Zózimo, ele persuadiu Agostino a refutar Juliano, e esse trabalho o ocupou até sua morte. Dezessete dos dezoito bispos que resistiram à epístola papal, retrataram-se subseqüentemente. Apenas Juliano persistiu. Depois de ser despojado de seu cargo, refugiou-se , juntamente com Coelestius, em Constantinopla, onde em 429 recebeu as boas-vindas do patriarca Nestor. Pouco se sabe da vida subseqüente de Pelágio ou Coelestius. A aliança de Juliano com Nestor não o ajudou porque o próprio Nestor foi mais tarde condenado por causa da heresia que leva o seu nome.

O terceiro conselho ecumênico em Éfeso (431 d.C.), realizado um ano após a morte de Agostinho, condenou o pelagianismo. Schaff faz a seguinte observação sobre o sistema de pensamento pelagiano:

Se a natureza humana não é corrupta, e a vontade natural é competente para todo o bem, não precisamos de um Redentor para criar em nós uma nova vontade e uma nova vida, mas apenas de alguém que nos melhore e enobreça; e a salvação é, essencialmente, obra do homem. O sistema pelagiano realmente não tem lugar para as idéias de redenção, expiação, regeneração e nova criação. Ele as substitui pelos nossos próprios esforços de aperfeiçoar nossos poderes naturais e a mera adição da graça de Deus como suporte e ajuda valiosa. Foi somente por uma feliz inconsistência que Pelágio e seus adeptos tradicionalmente permaneceram nas doutrinas da igreja da Trindade e da pessoa de Cristo. Logicamente, seu sistema conduzia a uma Cristologia racionalista”.

O próximo artigo desta série é SOMOS INCAPAZES DE OBEDECER: AGOSTINHO

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